A luz matinal bateu finalmente sobre seu rosto. Gio piscou algumas vezes até poder se localizar mentalmente. Havia deitado em sua cama e adormecido pesadamente. Lembrava-se de tudo, do livro, do estranho, do desaparecimento e de subir as escadas correndo. Havia trancado a porta do quarto e só depois percebeu que seu celular ficara lá embaixo. Não tinha nem como ligar para Nina. E se ela visse também o estranho? Aquilo era real? O que tinha acontecido?
Instintivamente sentara na cama e abraçara as pernas enquanto olhava a porta. Silêncio, apenas silêncio imperava na casa. A chuva recomeçara leve e o tamborilar suave no teto era a única coisa que ela podia ouvir. Nem um som de passos, nada. Sentiu-se exausta como se tivesse gasto muita energia, de repente. Pensara em descer quando ouvisse Nina chegando, mas os minutos foram passando devagar e a vigília silenciosa acabou por fazê-la adormecer sem perceber.
Olhou para a cama sem desfazer. Ela literalmente havia apagado e nem ouviu a irmã chegar. Seu sono parecia repleto de lembranças distantes que ela não conseguia resgatar. Nunca havia acontecido algo assim. Nina teria chegado bem?
Deu um salto, procurou os óculos caídos e correu para o quarto da irmã. Tudo parecia em ordem. Ela já tinha se levantado? Desceu as escadas correndo, entrou na cozinha e olhou tudo arrumado, xícaras postas na mesa, como a esperar pelas duas para um café matinal. Seus olhos procuraram ansiosamente pela imagem familiar e só relaxou quando viu Nina através da janela da cozinha. Estava colhendo mexericas no pé, afinal era época. Cuidava da horta e do pequeno pomar bem podado com uma disciplina militar. Um antigo rastelo no canto indicava que havia varrido as folhas derrubadas pela chuva do dia anterior e todas se encontravam empilhadas num monte do quintal. A horta crescia vistosa e as nuvens haviam se aberto fazendo as últimas gotas da chuva suave da madrugada brilharem sobre as folhagens para depois evaporarem.
Nina se virou e fez um gesto para a irmã. Gio sorriu um pouco e bateu de leve na janela como um cumprimento. Saiu e recebeu nos braços um cesto com frutas e algumas verduras colhidas.
— Tem muitas maduras. Precisei colher. Leve para dentro enquanto pego alguns limões. — disse enquanto a examinava com os olhos. — Você dormiu de roupa? Parece que um trem passou por cima.
— Mais ou menos — declarou ajeitando os óculos. Colocou tudo da cesta na pia e lavou as frutas e verduras. Depois botou a chaleira para ferver água enquanto a irmã vinha com alguns limões nos braços.
— Teremos limonada por dias – disse enquanto os despejava numa bancada. — Ontem cheguei tarde. Você deixou a luminária da oficina acessa, mas esqueceu de ligar o saguão.
— Estava tudo bem? Você viu alguma coisa?
— Alguma coisa tipo o quê? — Nina olhou para Gio que sentou-se e mexeu na xícara por alguns segundos. — Que tal você lavar a cara. Você parece meio que dormindo ainda.
— Sim. Verdade. Vou me trocar. — Se levantou e caminhou de volta para o quarto, mas antes passou os olhos na oficina e viu pela porta entreaberta que tudo estava exatamente como havia deixado. Ela não havia terminado tudo então não havia imaginado o que viu.
Subiu, trocou-se e jogou água no rosto. Penteou os cabelos curtos e caprichosamente recurvados para dentro. Ajeitou os óculos e desceu a tempo de sentir o cheiro do café recém coado. Ajudou a fazer as torradas e sentou-se em silêncio na mesa. Nina serviu o café e a fitou.
— Aconteceu uma coisa muito estranha ontem à noite — disse Gio e prosseguiu narrando tudo que se lembrava. Nina a ouviu silenciosamente enquanto colocava açúcar na sua xícara. Assim como no passado a irmã ouviu cada palavra citada sem interromper até ter certeza de que Gio tinha dito tudo que desejava dizer.
— Esta casa não é assombrada – declarou com a mesma certeza que passava manteiga na torrada. — Então que diabos foi isso?
— Eu não sei. Só sei que aconteceu... eu acho. — Mentalmente ela tentava reviver a cena vária vezes enquanto explicava. Encontrar algo falho ou insólito. Por um segundo percebeu que sua lógica parecia ter tirado férias ao tentar encontrar algo sólito numa situação claramente insólita. — Só sei que a oficina está assim como deixei.
— Como ele era? – Nina trabalhava seu maxilar com a mesma disciplina que fazia todo o resto e uma fatia de bolo desaparecia para os confins de seu estômago.
— Ele? Ah... mais alto que eu, tinha cabelos não muito curtos, mas encaracolados e bem escuros. Tinha um tipo de cartola na cabeça e usava uma roupa diferente. Algo como um colete com padrões muito bonitos tipo paisley[1], sabe? O traje tinha uma cor, parecia um turquesa escuro acetinado... muito diferente. Acho que usava botas pretas de cano alto. — Fechou os olhos para tentar lembrar mais detalhes. — Eu não consegui ver muito o tom da pele. Estava meio escuro. Ah, os olhos! — Apontou para a irmã com uma grande certeza. — Pareciam castanhos, mas tinham um reflexo que lembrava ouro, como papel laminado.
— Você descreve pessoas como se fossem livros — disse num tom divertido. —, mas o cara parece bonitão.
— Era muito diferente — confessou para si mesma e tomou um gole de café.
— Não era o cara do armário? — lembrou parando o trajeto da xícara até a boca.
Gio a ficou olhando por alguns segundos até entender ao que se referia. Por um momento ficou chocada mais com o fato de a irmã lembrar daquela história do que da possibilidade aventada.
— Você lembra disso?
— Claro que lembro. Fiquei decepcionada por ele não ver o futuro — confessou enquanto tomava o último gole de seu café. — Ele sumiu junto com o armário, né? Será que ele morava no armário?
— Não. Quer dizer... acho que não. — Ela mesma nunca soube o que aconteceu direito. Será que ele mentiu sobre não morar no armário? Naquela época acreditou em tudo o que o visitante lhe dizia, mas quando crescemos aprendemos a desconfiar. No fundo ainda a incomodava não ter respostas, mas incomodava mais desconfiar do visitante. Ele parecia muito vulnerável na época, e ainda era assim mesmo em sua lembrança como adulta. — Não sei o que aconteceu. Nunca mais o ouvi – finalizou.
— E se for ele?
— Por que você sempre acredita quando te falo essas coisas estranhas? – Gio a olhou com certa curiosidade. Não é como se ambas compartilhassem de algum poder sobrenatural, mesmo a irmã ainda se referindo ao Shiva Dançante como seu confessor em momentos de frustração. As coisas que via eram bem diferentes.
— Bem — ela começou enquanto levava a louça para a pia e a irmã a acompanhou no ritual —, porque você é como o vovô. Ele também via coisas quando era criança.
— Vovô?
— Sim. Não lembra da história do farol?
Gio parou para pensar naquilo. Sim, o avô contara que quando era muito pequeno, seu pai lhe mostrara um mapa do mundo e ele lhe disse que via um brilho sobre um país, como um farolzinho. O pai dele apenas sorriu e lhe respondeu “Então é para lá que você tem de ir, filho.”. Loredano realmente atravessou o oceano com sua arte e se instalou ali. Gio tivera essas experiências assim como o avô, mas no seu caso foi o visitante. Era um tipo de fenômeno? Estava voltando agora?
— Vovó sempre me contava essa história do farol sobre nosso avô. Ela dizia que você era como ele. Bom, você herdou a profissão dele no final, não foi? — Sorriu. — Eu sempre estive mais com nossa avó. Eu herdei a horta — disse de forma divertida. — São dons diferentes. Enfim, o que eu acho é que talvez agora você consiga descobrir o que aconteceu dentro daquele armário. — Virou-se e deu de ombros. — Você disse que ele parecia estar te protegendo, então se ele aparecer de novo, pergunte. Se ele falou dessa vez você não terá apenas “sim” ou “não” como resposta.
— Verdade. — Sorriu e terminou de arrumar a cozinha junto com a irmã. No final a praticidade de Nina sempre tinha seu valor.
Gio ficou durante a tarde terminando de arrumar a oficina e já se organizando para fazer outros materiais. Ainda tinha lotes de belas encadernações prontas para colocar à venda. No dia seguinte teria de ir para a biblioteca e o trabalho de restauro era bem mais simples e limitado, mas ainda assim era seu sustento principal e também tinha grande prazer em resgatar livros pra que voltassem às prateleiras e continuassem a ser lidos.
Ficou pensando nas palavras da irmã. E se fosse o visitante? Será que o tempo havia passado também para ele e tinha se transformado naquele estranho de aparência incomum. Achou engraçada a ideia, mas não seria de todo improvável. Alguém que conseguia fazer o que ele fazia, deveria ter se tornado potencialmente diferente, com o passar do tempo. Mas e aquele livro que tanto a impressionou? O que era? Porque ele disse para não tocar? Ao contrário do tempo de criança, agora tinha muitas perguntas a fazer, mas para isso deveriam se encontrar de novo.
Ela não sabia se estava pronta para um outro encontro. Uma ansiedade latente parecia se esconder em seu corpo e desejava que, dessa vez, não fosse pega tão desprevenida. Finalmente subiu para seu quarto e foi tomar um banho.
Enquanto a água quente caía sobre seu corpo sentiu seus músculos tensos e massageou os ombros tentando livrar-se no peso das emoções das últimas horas. Num minuto a vida era totalmente simples e, no outro, uma tempestade desejava se precipitar sobre ela. Era estranho, as pessoas sempre desejavam tanto que algo novo acontecesse e quando finalmente isso ocorria, um temor primitivo se abatia sobre elas; um medo de ter suas rotinas alteradas, seus pensamentos transformados e suas vidas viradas de cabeça pra baixo. O fato é que ela já vivera algo parecido e agora era uma adulta. Se acontecesse lidaria melhor com isso. Era no que queria acreditar.
Secou-se, vestiu-se e caminhou para o quarto. Durante alguns minutos sentou-se na cama e depois olhou para o armário, mas não o do canto do quarto e sim o antigo, o imaginário, que num passado estivera ao lado de sua cama. O velho e simpático armário de maçaneta de porcelana que ficava iluminado a noite pela luz que vinha da janela lateral ao lado de sua cama. Agora havia apenas aquela cômoda que lhe roubara o lugar. Lembrou-se com certa vergonha que durante um tempo, ainda pequena, abria as gavetas na esperança de encontrar o livro ou algum badulaque estranho. Coisas de criança. Tirou os óculos devagar, deitou-se na cama e colocou os braços sobre o rosto.
— Tem alguém aí? — por puro reflexo repetiu a primeira pergunta que fizera no passado. — Você ainda fica no armário?
— Por que eu ficaria num armário? — o timbre de voz seguro e aveludado fez Gio ter um sobressalto na cama. Sentou-se aterrada e olhou ao redor, mas tudo estava completamente tranquilo e não havia ninguém. Olhou para o armário e a porta estava bem fechada. Ela tentou se controlar o melhor que pode e concentrou-se para dar continuidade a conversa:
— Você... está aqui?
— Com certeza — foi a resposta.
— Onde? Não vejo ninguém.
— Olhe para mim. Olhe pra mim, agora. — a voz repetiu num tom firme. Gio virou-se e foi então que viu, sentado na poltrona perto da janela, com uma das pernas cruzada sobre a outra, o mesmo jovem e estranho homem da noite anterior. Ele parecia bem à vontade com os dedos das mãos entrelaçados e os cotovelos repousando nos braços do móvel. Enquanto Gio o observava rígida como uma estátua, tentando captar aquela imagem como algo real, ele inclinou o rosto com uma expressão curiosa e sorriu um pouco.
— Nós já nos conhecemos? — Essa era a pergunta que Gio soltou com a garganta um tanto seca. Se fosse o visitante ela saberia a resposta.
— Infelizmente não, mas parece que estávamos fadados a isso, não é? — Ele notou que sua resposta deixou transparecer um pouco de decepção nos olhos dela, mas era compreensível. Agora haviam outras coisas a ser ditas e todas eram muito urgentes. Aquilo que era sua desconfiança se confirmara na noite anterior e uma certa euforia o havia tomado por algum tempo. Tinha de ser cuidadoso e fazer as coisas do jeito certo.
Enquanto esses pensamentos tomavam conta de sua mente, na de Gio um pouco de tristeza se mesclava a suas esperanças. Não, ele não era o visitante. Então quem era esse? Um similar? Um primo distante? Haveria um festival de seres sobrenaturais entrando em sua vida de tempos em tempos? O curioso era que, apesar do tanto que aquilo era inusitado, ela não sentia medo ou estranhamento. O novo visitante tinha algo de peculiar, algo de reconfortante que ela ainda não conseguia identificar exatamente. Talvez fosse sua postura confiante ou os gestos suaves. Ele se levantou tranquilamente e tirou seu chapéu com um floreio um tanto antiquado, mas gracioso.
— Sou Poliphilo. É um prazer encontrar você de novo, senhorita artesã. — Seus olhos novamente tinham o brilho do ouro laminado e Gio arrumou os óculos para ver aquilo. Não era uma simples impressão; seus olhos realmente tinham um reflexo de ouro.
— Eu... sou Giovanna, mas pode me chamar de Gio — disse aquilo enquanto pensava que pelo menos dessa vez sabia qual era o nome da aparição. — Você não me parece um fantasma, nem um gnomo ou um alienígena. Então o que você é?
— Eu? Eu sou um biblios e estou aqui porque acredito que seus olhos alcançam mais do que imagina, Gio – explicou por fim e deu um sorrido radiante. Seus dentes eram brancos como o mais branco papel.
[1] Estilo de estampa que surgiu no século XVII e tem origem indiana e persa.


