Gio ainda tentava entender aquele termo dito por ele de forma tão trivial. Tinha certeza de que aquela palavra tinha um equivalente muito familiar seu, mas aqui estava sendo aplicado com um sentido totalmente novo.
— E o que seria exatamente um biblios? — O observava cuidadosamente enquanto ele lhe falava num tom tranquilo e voltava a se sentar.
— Imagine que, desde o início, quando a Humanidade desenvolveu a capacidade de registrar suas ideias, pensamentos e sentimentos através dos meios da escrita, algo nasceu dessa poderosa fonte criativa. Uma energia que nós chamamos de Gnósis.
“O Gnósis é uma fonte de energia composta não apenas dos textos escritos originalmente em pergaminhos, tabuletas ou livros, mas de tudo que foi envolvido na construção disso para que estes objetos tivessem uma forma final; a tinta, o tipo de material do papel, encadernação, costura, selos, detalhes únicos como engastes de pedrarias, marcações ou desenhos. Tudo que está envolvido num processo de criação e tem o objetivo de dar forma final a uma ideia escrita.
“Com o tempo essa fonte acabou por gerar seres que tinham seus corpos definidos pelos elementos que compunham esses objetos. Dessa forma um ser como eu, por exemplo, sou composto pela energia de diversos elementos, como capas, tinta, conteúdo ou detalhes que podem vir de objetos diferentes. E à medida que a humanidade foi criando e produzindo mais, fomos nos tornando mais complexos e em um número maior. Resumindo, biblios são seres que são gerados pela energia Gnósis que existe no mundo derivada da criatividade humana colocada em suas criações escritas.”
Giovanna ficou alguns segundos olhando fixamente para ele e, em silêncio, levantou e aproximou-se para pegar no pulso dele e olhar sua mão com cuidado. Poliphilo levantou-se devagar para observá-la também enquanto os dedos dela pressionavam sua pele que tinha um delicado tom de areia. Podia ver os cabelos curtos e voltados teimosamente para dentro que criavam uma moldura graciosa para seu rosto pequeno, com olhos expressivos.
— Isto me parece bem real. Sua pele não difere da minha... — confessou e a resposta que recebeu foi um leve sorriso acompanhado de uma translucidez da pele que deixou mais visíveis veias escuras como nanquim e marcas que lembravam vagamente letras, símbolos e palavras de inúmeros idiomas. Ela afastou-se um passo surpresa e o olhou nos olhos. O reflexo de ouro estava lá. Agora entendia o que era: ouro, puro ouro de algum livro escrito a sabe-se lá quanto tempo.
Seu sangue é como tinta.
Havia soltado seu pulso e sem perceber tocou no colete de textura suave como seda. Em todos os aspectos parecia um humano como qualquer outro.
— Já viu o que queria? — disse ele sem se mover, fazendo-a se afastar um pouco mais. Gio sentiu o rosto um pouco quente enquanto recuava e esperava não estar corada.
— Desculpe. Eu só queria ver se... — tentava explicar.
— ...eu não era de papel? — brincou. Ela concordou mecanicamente com a cabeça e sentou-se para continuar a conversa. Fez um gesto para que ele se acomodasse outra vez.
— Acho que isso foi meio ridículo. Sua pele... — gesticulou enquanto explicava — ...é impressionante. Você... quer dizer, vocês são todos assim?
— Sim — Ficou em silêncio notando que havia uma mistura de desconforto com a resposta curta misturada com uma expressão um tanto engraçada de Gio ao erguer sutilmente o rosto indicando uma espera. — Nós todos somos compostos pelo Gnósis e esse equilíbrio delicado e preciso também nos torna vulneráveis. Se um dos elementos que nos compõem desaparecer definitivamente, nós desaparecemos junto. Seria o equivalente ao “morrer” de vocês.
— E se esses elementos forem preservados aconteceria o mesmo com vocês? — sugeriu.
— Sim, desse modo, como pode imaginar, viveremos o tanto quanto nossos Gnósis combinados permitirem — continuou. — Algumas vezes um elemento pode ser destruído ou deteriorado parcialmente. Isso afeta diretamente um de nós, ou até mais de um, contudo não é fatal, embora possa comprometer o modo como vivemos, dependendo do dano.
— E quantos anos você teria?
— Mais de quatro séculos, posso afirmar — disse e colocou seu chapéu sobre a perna enquanto Gio emitiu um som engraçado numa mistura de choque e surpresa. —, mas eu realmente gostaria de lhe falar de algumas coisas mais urgentes, como o livro que você viu ontem.
— Ah, o livro! — Se recompôs depressa ao lembrar-se do misterioso volume. — O que era aquilo? Tinha uma energia pulsante... — ela tentava traduzir em palavras suas sensações —...como se estivesse vivo.
Poliphilo inclinou-se estreitando levemente os olhos. Uma sensação de júbilo nascia secretamente em seu interior. Gio continuou falando.
— Havia algo nele que me atraía muito. Era como se estivesse me chamando. Eu tenho certeza que ouvi algo — confessou.
— O que você ouviu?
— Bona hic invenies. Aqui encontrará...
—... coisas boas — completou e ficou pensando naquilo por alguns segundos. — Ele encontrou você também.
— Ele quem?
— Nômade. Ele é um necromon.
— Um o quê? Tem mais gente além de vocês, Biblios? — perguntou surpresa.
— Na verdade sim. Necromons são basicamente como biblios, mas há algo de diferente neles. Por algum motivo os necromons não podem ser vistos pelos biblios, mas o contrário não ocorre. Sabe nós também podemos criar livros, mas os nossos são repletos de Gnósis que pode transmutar sua estrutura ou ser usada como uma espécie de “poder”. Por isso os chamamos de Grimoires. Através deles podemos fazer coisas especiais, como inspirar humanos a escrever e criar outros livros, que gerarão mais Gnósis.
— Num círculo perpétuo de criação. — ela pensou alto.
— Exato. Mas os Grimoires diferem uns dos outros e apenas quem os criou pode lê-los. No caso dos necromons, eles não conseguem criar Grimoires, mas outro tipo de livro que nós chamamos de Sumidouro. — Levantou-se e caminhou até a estante pegando dois livros para exemplificar. — Imagine: dois livros gerados através do Gnósis, mas enquanto um doa, outro suga. Humanos que tocaram um Sumidouro perderam temporariamente a memória. Embora não seja exatamente letal, este tipo de criação pode gerar problemas que desencadeiam situações perigosas.
“Da mesma maneira que há algo que faz os necromons serem diferentes de nós, também seus livros carregam essa característica. Eles surgem esporadicamente em lugares diferentes e meu trabalho é captura-los para que não causem problemas. O que eu observei ao capturar estes exemplares por muito tempo é que a energia colocada neles parece ser quase coletiva, como se mais de um necromon fosse necessário para fazê-lo. É algo que exige muito esforço deles, acredito.”
— Mas por que eles fazem esses Sumidouros?
— Acredito que tenha uma função importante para eles, mas o de ontem tinha um Gnósis muito poderoso. Mesmo fechado pude sentir e essa é a assinatura de Nômade. Eu acredito que ele é o necromon descrito nos textos de Nabu.
— E quem seria Nabu? — Gio cruzou as pernas na cama. A sensação de proximidade com Poliphilo parecia extremamente natural à medida que ele contava tudo sobre aquela incrível realidade que estava descobrindo.
— Nabu foi o primeiro dos biblios. Pelo menos foi o primeiro que tenha criado um Grimoire, segundo os antigos registros. Não temos muitos dados de Nabu, mas sabemos algumas coisas sobre seu Grimoire, porque ele desapareceu, mas seu livro ficou.
“Nossos livros, assim como os dos Humanos sobrevivem para além de seus criadores. No caso de Nabu, seu livro não pode ser aberto por ninguém que não tenha um Gnósis igual ou maior que o dele. Deve ser um biblios de igual poder ou... um Gnóstis.
“Nabu deixou alguns registros descrevendo um ser que se parece com os biblios, mas é invisível aos nossos olhos, que nós chamaríamos de necromons, tempos depois. Ele falou de um ser que seria tão antigo e poderoso como ele, mas pertencente a esse grupo e o chamou de Nômade. Parece que eles conseguiram se comunicar de alguma força. Infelizmente a informação se perdeu.
Eu acredito que talvez essas e tantas outras respostas estejam no Grimoire de Nabu.”
— E por que não o pegam e leem? — Giovanna se levantou e pegou uma caderneta sobre a cômoda. — Meu Deus, eu preciso anotar todos esses nomes. É muita coisa — disse para si mesma. Poliphilo sorriu um pouco e continuou.
— Porque não existe nenhum biblios que possa abrir e ler o Grimoire feito por Nabu. Nenhum de nós tem poder para lê-lo. Ele se encontra encerrado dentro de um cofre segredo que foi criado pelo próprio Nabu, antes de desaparecer, e é guardado por dois biblios antigos e poderosos que fazem parte do Conselho: Ganesha e Grisial.
— Mas você falou que um outro podia ler... um gn.. — Tentava lembrar da palavra.
— Gnóstis. Sim. — Aproximou-se e fitou-a bem nos olhos. — É aí que você entra porque creio que Nômade descobriu algo que eu desconfio. Que seus olhos alcançam mais do que imagina, senhorita artesã. Você pode ser uma Gnóstis.
— O que seria uma Gnóstis?
— É uma lenda entre os biblios. Assim como vocês tem suas lendas nós temos as nossas e o Gnóstis é uma delas. Tudo isso porque existem alguns registros atribuídos a Nabu onde menciona a existência de um humano que poderia ter um Gnósis igual ao de um biblios e mais; a capacidade de ler qualquer Grimoire, possibilitando que o máximo do Gnósis que exista dentro dele se manifeste.
“Você disse que ouviu algo vindo do livro Sumidouro. Isso é inédito para mim. Significa muito. Nômade também busca pelo Gnóstis talvez pelo mesmo motivo que eu: liberar o conhecimento que existe no Grimoire de Nabu.”
— Vocês só sabem que estes necromons existem por causa do que Nabu falou e desses livros que eles fazem?
— Sim. Ao contrário de nós, que podemos ficar visíveis ou invisíveis para as pessoas de acordo com nossas necessidades, eles não podem ser vistos pelos biblios e nem pelos humanos, até onde sabemos. Levou um tempo para descobrirmos que eles faziam livros e percebermos que estes ocorriam com certa frequência. Assim que confirmamos que se humanos os tocassem acidentalmente perderiam a memória, nós começamos a recolhê-los e guarda-los já que não podem ser destruídos, assim como os Grimoires.
— Então você é um... caçador de Sumidouros?
— Sou conhecido como o Alfarrabista dos Mortos. Existem outros como eu, mas guardam os Grimoires de biblios que já se foram. Eu guardo os livros dos necromons.
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Gio ficou em silêncio olhando para ele. Poliphilo tinha um estilo incomum e seus trajes tinham cores chamativas que lembravam lindas e antigas capas ornadas com ouro e arabescos. Sua postura, sua excêntrica cartola com detalhes coloridos nas dobras da aba, sua camisa de um tom extremamente branco por sob o colete de Paisley em tons dourados. Quais livros o compunham? Seu nome correspondia ao lendário personagem Poliphilo[1]. Se assim fosse ele era um ser muito antigo, mas o homem que estava diante de seus olhos parecia jovem e até delicado em sua esguia elegância.
Do que mais era feito o Alfarrabista dos Mortos?
Porque os Sumidouros chegaram até ela? Seria mesmo uma Gnóstis como Poliphilo acreditava?
Fechou sua caderneta enquanto sua mente formulava a próxima pergunta que desejava fazer, mas seu fluxo de pensamentos foi interrompido com uma batida na porta seguida de uma voz. Ela voltou-se na direção da mesma.
— Gio, fiz um lanche. Venha comer! — Nina abriu a porta e no mesmo segundo Gio virou o rosto para onde estava Poliphilo. Como mágica ele havia desaparecido em um instante. Piscou várias vezes para ter certeza daquilo. — Que foi? — Nina a trouxe de volta.
— Nada. Estou indo. — Achou que seria melhor organizar suas ideias antes de contar qualquer coisa para a irmã. Havia muita coisa para recapitular em sua mente que parecia um furacão de informações novas e fantásticas naquele momento.
Guardou a caderneta por sob o travesseiro, depois se levantou e saiu deixando o quarto vazio.
Poliphilo havia realmente partido, mas um outro observador estava na varanda ouvindo de forma discreta toda a conversa. Se visível, seu corpo levemente recurvado cobriria a visão de toda a vidraça e causaria um efeito intimidador, mas não era o caso. O alfarrabista não conseguia senti-lo nem o ver, embora soubesse de sua existência. Isso era bom, ele estava indo no caminho certo porque agora este era o caminho de ambos. A jovem vibrava o Gnósis com um poder imenso e a primeira vez que a viu seu coração transbordou de esperança. Agora deveria ter paciência. Havia esperado por tantos séculos e um pouco mais seria insignificante diante dos tantos anos de solidão e desespero pelos quais havia passado. Havia aprendido a esperar e acreditar. Sabia também que seu amigo estava seguro e que não demorariam a compreender tudo.
Uma chuva fina começou a cair suavemente e ele olhou para as gotas delicadas que atravessavam suas mãos translúcidas. Podia ver seus ossos através da pele emaciada. Seus dedos longos se moveram devagar indo em direção ao rosto coberto pela longa máscara negra com bico de pássaro. Ela protegia sua feição delicada e incompleta. Há muito tempo aprendera a protege-la e a escondê-la Humanidade. Aprendera com o medo, com a tristeza e a solidão. Agora desejava mostrar que também conhecia outras coisas além de toda a desesperança. Ajeitou suavemente o amplo capuz que fazia parte de seu longo manto e olhou para o céu que ostentava a lua com uma delicada auréola de luz.
Amanhã haveria sol. Amanhã seria melhor.
Sorriu um pouco por trás da máscara que o escondia.
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[1] Referência ao Hypnerotomachia Poliphili. Obra impressa em 1499, de autoria de Francesco Colonna.


