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Ela adorava aquele quarto. Toda vez que chegavam as férias sua grande alegria era passar os dias na casa dos avós. Preparava-se animadamente, planejando cada aventura no jardim com Nina, visitando a horta, colhendo frutas no pomar e claro, excursionado a oficina de livros do avô. Aquele lugar cheio de caixas antigas com objetos pequenos e bonitos, capas coloridas, folhas laminadas de ouro e instrumentos misteriosos. Também haviam os desenhos que o mestre artesão fazia, lindos! Passava tardes imitando seus desenhos.
Claro que o quarto era seu canto especial. Na casa dos pais, em São Paulo, dividia o mesmo ambiente com a irmã quatro anos mais velha. Aqui o quarto era todo seu. Longo, com uma linda janela lateral ao lado da cama de onde via o sabiá do campo e o bem-te-vi cantando logo cedo, e terminando na varanda de Julieta, como Nina chamava as varandas dos respectivos quartos dos fundos da antiga casa. Havia um antigo armário branco bem diante de sua cama feita de latão, pintado da mesma cor, a poltrona perto da varanda e as estantes embutidas por toda parede ao redor da porta de vidro que dava para a varanda. Uma cômoda antiga de cerejeira ostentava um abajur velho, mas simpático que iluminava o quarto com seus matizes de amarelo. Toda vez que vinha passar seus dias naquela casa lá estavam eles, os móveis inseparáveis e confidentes de seus pensamentos. Contudo alguma coisa mudara sutilmente das últimas duas vezes em que visitara o lugar.
Já era a terceira vez agora. Na primeira vez que chegou, ao abrir o armário para colocar seus vestidos nos cabides vazios, ela conseguiu divisar no fundo do armário, num cantinho, alguns pequenos objetos alojados ali. Um botão vistoso, um pedaço de fita colorida, um selo antigo, um papel estampado a até uma tampinha com algum desenho gracioso. Inicialmente ela achou, em sua mente infantil, que a avó os deixara para ela, mas no dia seguinte já haviam sumido. Com os folguedos das férias o pensamento se perdeu. Da segunda vez ela notou também a mesma coisa ao abrir o armário, objetos com leves variações apareciam e desapareciam no canto do armário. Agora já era a terceira vez e Gio começou a acreditar que havia um padrão estranho acontecendo ali. Então, com toda a experiência de seus nove anos ela resolveu decifrar o mistério.
Dessa vez não haveria distrações. Ela começou a observar a presença ou não de objetos no fundo do armário e foi aí que descobriu algo muito interessante. Eles apareciam por algumas horas e depois sumiam, tampouco eram sempre os mesmos: variaram em formas, cor e natureza, mas não apareciam sempre. Por um segundo ela pensou em ratos. Sim, podiam ser ratos. Será que estariam armazenando todos aqueles objetos em algum lugar? O avô já lhe falara de pássaros que pegavam objetos, alguns animais também faziam isso. Seria um rato ali? Ficou com medo de contar a avó e um grande furdunço acontecer. Queria fazer a descoberta sozinha, ter sua certeza para declarar algo. Resolveu ficar a noite vigiando o armário para ouvir algum som rasteiro, de algo sendo roído ou um chiado. Na primeira noite não aconteceu nada ou talvez ela tenha dormido depressa demais.
Mas o que ouviu na segunda noite a petrificou.
Não era nada do que esperava.
Ali no escuro, tendo a luz da Lua como seu guia, Gio ouviu o som de alguém se ajeitar dentro do armário, como uma criança brincando com algo. Alguém mexia com algo, provavelmente os objetos que deveriam estar lá dentro, agora. Uma mistura de medo e surpresa se agitou dentro dela. Seria um fantasma? Havia uma passagem mágica pelo armário? Um grande animal misterioso se escondia lá?
De seus lábios a pergunta natural se formulou:
— Tem alguém aí? — Não houve resposta. Um silêncio tumular se instalou como se o que estivesse dentro do armário tivesse sido pego de surpresa também.
E se fosse um fantasma? Conseguiria falar? Gio ficou matutando alguma forma de se comunicar e naturalmente seguiu.
— Eu ouço você aí dentro. Você sabe falar? — perguntou, mas apenas houve mais silêncio como resposta.
Afundou devagar nas cobertas e escondeu a cabeça com certo desapontamento. Seria um animal com certeza. Seus olhos pesaram e o sono recaiu sobre sua mente.
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Na manhã seguinte espreguiçou-se olhando o dia ensolarado e ouvindo as cantorias matinais. Um galo da vizinhança cacarejou animadamente. Levantou-se ajeitando a camisola e olhou para a porta do armário. Deu um suspiro e parou diante dele. A pequena mão girou a chave e segurou o velho puxador de porcelana. A luz externa invadiu-o e lá estavam novamente os pequenos objetos aleatórios de sempre.
Contudo havia algo mais.
Gio prendeu a respiração por um segundo ao ver os três pequenos objetos que estavam alinhados caprichosamente; um antigo selo para timbrar cartas com uma inicial, um tipo para impressão e um pedaço de fita adesiva com uma estampa de uma letra rebuscada, provavelmente parte de uma fita decorativa. Juntos formavam uma palavra simples de ser lida.
SIM
O coração da menina disparou um misto de alegria por ter descoberto algo fenomenal. Era um sim. Um sim para uma pergunta ou um sim para as duas? Milhares de pergunta surgiram em sua mente e uma nova motivação percorreu seu corpo junto com a adrenalina. Era senhora de um segredo sensacional e agora tinha de saber lidar com ele. Desmanchou a formação e empurrou os objetos para o canto do armário junto com todos os outros. Algo lhe dizia que em poucas horas desapareceriam.
Vestiu-se depressa e correu ao ouvir a avó chama-la para o café da manhã. Engoliu o pão e quase engasgou com o café com leite.
— Calma, menina. O dia não foge. — Filipa sorriu e voltou-se para olhar as panelas fumegantes e cheirosas. Gio pegou sua xícara e empinou-se na pia para deixa-la lá dentro e sair correndo. Nina ainda devia estar dormindo, mas ainda não queria revelar seu segredo para ninguém. Queria compartilhar do pequeno sabor da descoberta sozinha por algum tempo. Queria saber mais antes de anunciar seu grande segredo.
Sentou-se no gramado e ficou olhando para o avô que caminhava tranquilo, varrendo as folhas do quintal. Lembrou-se do tipo no meio da palavra “escrita” pelo misterioso visitante. Será que era um dos tipos do avô? Se fosse voltaria a caixa em pouco tempo. E então pensou no trabalho que o visitante tivera ao montar aquilo. Será que tudo que pegava sumia ou ele apenas levava de volta? Pegaria tudo emprestado? Os objetos que escolhia eram, em sua grande maioria, velhos, mas algumas coisas saltavam aos olhos. A escolha das cores das fitas, os padrões, tudo era muito bonito e combinado. Lembrava as coisas que o avô fazia. Até conchas já tinham sido colocadas no seu armário, sempre pequenas e de cores bonitas e delicadas.
Se ele falava, porque não respondeu na hora? Porque fez aquela montagem? Tinha medo? Era tímido? Foi buscar peças longe, perto, onde? Se fosse falar com ele daquela maneira demoraria muito até obter algumas respostas. Precisava de algo mais prático. Ficou olhando para o avô sem ter dele também as respostas que queria. Ele lhe sorriu e bateu a vassoura no chão para tirar os restos de folha. Gio bateu os pés instintivamente, imitando o barulho que ele fez com a vassoura. Uma ideia inesperada surgiu em sua cabeça e fez seus olhos se arregalarem.
Levantou-se como impulsionada por uma mola. Correu para o interior da casa e voltou ao quarto. Olhou para a porta do armário, abriu-a. Os objetos já tinham sumido. Bateu na parte de dentro da porta e o som característico da madeira soou. Sorriu. Talvez desse certo.
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Estava tão agitada que até Nina estranhou o comportamento da irmã. Depois do jantar saiu correndo para o quarto e teve de ser chamada de volta para escovar os dentes. A vó a olhou com estranhamento, afinal sempre queria ficar acordada até mais tarde para aproveitar cada segundo das férias. Agora parecia louca para ir dormir. Gio sorriu e fechou a porta bocejando exageradamente. Pegou sua camisola, vestiu-se diligentemente, ligou o abajur e desligou as luzes. Sentou-se na cama de pernas cruzadas e ficou esperando. As horas se arrastavam devagar e logo as posições na cama foram mudando. O silêncio aos poucos foi imperando na casa e na noite, assim como era dentro do armário. Será que o abajur atrapalhava? Correu para desliga-lo. Ajeitou a postura, deitou, sentou de novo. Logo começou a cabecear. Por fim se escorou na janela numa tentativa de ver a lua com seu halo brilhante. Algumas nuvens a cobriam vez ou outra. Ela semicerrou os olhos.
Um som de algo macio deslizando dentro do armário ecoou. Gio empinou o corpo e olhou para a porta. Ajeitou-se novamente. Um tremor percorreu se corpo e eriçou os pelinhos do braço. Ajeitou os cabelos curtos e curvados atrás das pequenas orelhas. Fechou as mãos, juntando coragem para falar:
— Olá — a voz soou um pouco desafinada e o som dentro do armário parou. Ela continuou. — Eu vi sua mensagem e tive uma ideia. Vou fazer perguntas e você responde “sim” ou “não”. Uma batida na porta pra “sim”, duas batidas pra “não”. Você que tentar? Acha que consegue fazer? – Houve um momento de silêncio até que Gio ouviu com muita surpresa um leve baque na porta.
Ele ouve, ele fala! Está falando comigo agora!
Ela quase riu. Queria começar pelo básico.
— Você... é um fantasma? — Dois baques suaves foram ouvidos e ela ficou muito aliviada de não ter uma alma penada ali. — Você se parece com uma menina? — A negativa a ajudou a iniciar uma imagem mental do estranho. Continuou. — Você guarda coisas no armário? — A resposta veio afirmativa. — Você mora aí? — Um breve momento de silêncio e uma negativa veio. Gio ficou imaginando porque o visitante ficava no armário. Pela sua limitada experiência, as coisas que ficavam dentro dos armários tinham o objetivo de assustar as crianças e, geralmente, eram fantasmas ou o bicho papão, mas ela achava que bicho papão não existia, afinal já tinha nove anos e sabia dessas coisas, embora fantasmas fossem uma possibilidade. Uma outra opção surgiu em sua mente e a fez hesitar um minuto. Finalmente resolveu perguntar. — Você está se escondendo? — disse com voz cautelosa. O único baque a fez ficar muito surpresa. O visitante realmente se escondia ali. Ele trazia objetos que, por algum motivo, iam embora e era tímido o bastante para não falar usando sua voz.
— Você está sozinho? — Um “não” seguido de um “sim” a deixou confusa por alguns segundos. — Ah! Isso é um “às vezes”? — disse e obteve uma afirmação — você é do meu tamanho? — Outra confirmação. Ela queria perguntar diversas coisas. Porque os objetos sumiam? Ele os levava? Tinha poderes mágicos? Haviam tantas perguntas, mas ali, naquele momento algo urgente soou em sua mente porque ela pensou que se estivesse sozinha e escondida, poderia estar sentindo aquilo.
— Você está com medo? — O silêncio foi quebrado por um único baque e a alegria de Gio se esvaiu do coração.
O visitante está se escondendo, é pequeno e está com medo. Não há mágica nisso.
Ela estendeu a mão no ar para o armário, mas teve medo de insinuar que poderia abrir a porta, que poderia vê-lo. Ele queria ser visto?
— Você quer que eu te veja? — O tempo sem resposta afligiu a pequena Gio. Ela então continuou. — Meu nome é Giovanna, você pode me chamar de Gio. Quer ser meu amigo? — Dessa vez o silêncio perdurou por um longo tempo. Gio apurou o ouvido e parecia que não havia mais ninguém ali. Ela se encolheu na coberta. O frio da madrugada começava a tomar o ambiente e suas pálpebras estavam pesando. O cansaço, efeito da agitação extrema do dia, a fazia querer cerrar os olhos e mergulhar nos sonhos, mas seu coração estava inquieto. Por fim, deitou-se silenciosamente de lado, cobriu-se e virou o rosto para a janela. Agora a lua brilhava plena para ela.
Por alguns segundos ainda ficou olhando, até que finalmente ouviu um tímido baque na porta do armário que a fez sorrir e permanecer em silêncio para depois mergulhar nos sonhos, sem mais resistência.
O visitante aceitara sua amizade.
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Gio achou que precisava de ajuda e Nina foi naturalmente sua primeira escolha. A irmã a ouvia com atenção enquanto ela narrava detalhadamente toda a história. Por fim, abriu a porta do armário e mostrou os itens no canto, escondidos, explicando que em pouco tempo sumiriam. Logicamente ambas ficariam ali para testemunhar o fenômeno. Nina não zombou da irmãzinha por nenhum segundo. Do alto de seus treze anos ela ponderou cada palavra ouvida enquanto olhava os objetos com atenção. Gio não imaginava ser recriminada por Nina; ela não tinha moral para criticar ninguém, afinal vivia conversando com o Shiva Dançante, como a irmã chamava a estátua da divindade hindu que havia na biblioteca e pertencia ao seu avô. Imaginou que estavam no mesmo barco.
Nina examinou por exatos dois minutos as fitas de tecido, recolocou no armário e fechou a porta. Em seguida relatou suas impressões mais profundas:
— Essas fitas parecem muito velhas, assim como tudo que ele pega. Onde ele consegue essas coisas?
— Não sei – disse Gio, virando as mãos.
— E se ele for um e.t.? Sabe, como no filme? Ou talvez o armário seja mágico como aquele do livro da história com o leão, lembra?
Gio olhou para o armário pouco estimulada pelas teorias da irmã. Não havia pensado no visitante como um alienígena e o armário não lhe parecia muito mágico. Ela já sentara dentro dele algumas vezes para testar o espaço e nenhuma passagem sobrenatural se abrira para ela.
— Não sei. Preciso perguntar para ele – disse por fim.
Elas olharam o móvel e abriram a porta para testemunhar que, de fato, não havia mais nada ali. Nina respirou fundo, cheirou o ar como se tivesse algum poder perdigueiro oculto para detectar farsas, deu batidinhas na madeira que parecia muito sólida e proferiu seu veredito:
— Certo. Eu vou fazer uma lista de perguntas que você pode fazer para ele – ela parecia radiante com a ideia. Gio concordou prontamente, mas assim que teve acesso a mesma, na noite seguinte, entregue por uma irmã muito decepcionada por não poder testemunhar a conversa já que o visitante poderia ficar inseguro, ela percebeu que a ideia não tinha sido tão brilhante. Começou a ler para si a lista de perguntas:
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- Você é um ete? (Caso a resposta seja positiva pegue a lista anexa)
- Você é um gnomo?
- Você traz os objetos e depois os leva para algum outro lugar?
- O armário é mágico?
- Você é mágico?
- Você vê o futuro?
- Nina passará de ano?
- Bebeto gosta de Nina?
- Nina será rica no futuro?
- Você consegue ver através de portas?
- Você...
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Depois da décima pergunta Gio desistiu um pouco da ajuda de Nina que parecia mais interessada num vidente do que no visitante em si. Ela resolveu tentar fazer perguntas simples que lhe vinham à cabeça e podiam ser respondidas com sim ou não. O problema é que muitas respostas faziam surgir outras perguntas que exigiam respostas mais complexas do que apenas um “sim” ou um “não” e ela se via pouco imaginativa para tentar fazer suposições com um ser tão misterioso.
Mas naquela noite o visitante não veio e Gio, apesar de um pouco decepcionada, teve mais tempo de formular perguntas mais eficazes. Para fugir das perguntas de Nina ela disse que o visitante não podia ver o futuro o que fez a irmã ficar um pouco decepcionada e voltar-se a ajudar a avó na horta ou ir ver televisão.
Na noite posterior o visitante veio. Gio aproveitou algumas perguntas da irmã e arrematou com outras suas. Dessa forma ela descobriu coisas básicas como o fato dele não ser um alienígena, não ser um gnomo, do armário não ser mágico e ele não conseguir ver através de portas, nem ver o futuro. Descobriu que ele se sentia seguro dentro do armário, mas não ficava lá o tempo todo. Que podia ir a outros lugares, mas as pessoas não o viam porque se escondia, como fazia agora. Algumas perguntas não obtinham respostas como o fato dele ser mágico ou dele levar os objetos embora. Gio começou a achar que ele não conseguia explicar as coisas com apenas um “sim” ou um “não”. Ela suspirou e ficou olhando a porta.
— Eu não sou muito boa em fazer muitas perguntas diferentes. Acho que você não consegue responder tudo com um “sim” ou um “não”, não é? – A batida afirmativa a satisfez por um lado. – Desculpe, eu acho que sou meio burra. – Duas pancadas veementes a fizeram sorrir. Então uma ideia a fez ficar animada. –Eu tenho livros! Você quer que eu leia uma história pra você?
A afirmação a fez dar um salto, escolher um livro na estante e correr de volta. Assim Gio se ajeitou na cama e instruiu o visitante de que ela pararia de ler quando ele desse duas batidas na porta. Desse modo eles passaram algumas noites num ritual de se cumprimentarem através de batidas, falas curtas de Gio e leitura de pequenas histórias. Às vezes Gio parava porque queria dormir, às vezes o visitante dava uma batida e sumia, outras vezes ele não vinha. Gio ficava pensando nessas noites se ele tinha nome, mas tinha medo de perguntar e ele sair a buscar recortes para achar letras que o compusessem. E se ele não tivesse nome? Sua vida, se é que podia chamar assim, era muito estranha. Ela apenas preferia chamá-lo de “amigo do armário”.
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Numa manhã Gio amanheceu com uma surpresa inesperada. Quando seus olhos se abriram e ela se moveu para o lado do armário um baque oco de algo caindo no chão chamou sua atenção. Algo havia sido posto ao lado de seu travesseiro e caiu quando ela se moveu. Procurou o que tinha caído um pouco abaixo a cama e ficou surpresa ao ver uma enorme concha do mar num lindo tom coral. Ela já tinha ouvido falar dessas, mas nunca tinha pegado uma. Colocou a concha no ouvido e ouviu o som característico de “mar” que elas emitiam. Sorriu observando o inusitado objeto que tinha sido deixado ali. Levou alguns minutos para entender o que acontecera, por fim. Olhou a porta do armário entreaberta e viu alguns fragmentos de areia no chão. Ele finalmente saíra e agora lhe deixara um presente. Gio sentiu uma mistura de alegria e orgulho pelo tímido amigo poder fazer aquilo.
Ele confia em mim.
Ficou segurando a concha, colocando-a vez ou outra no ouvido. Sabia que em algumas horas, ou até minutos, ela desapareceria. Seria apenas uma lembrança de um momento efêmero de gentileza no mundo que parecia impalpável para aquele ser.
Curiosamente, durante todo aquele tempo nunca vira nada sumir. Sempre era apenas um estar e não estar entre um abrir e fechar da porta. Mesmo com Nina fora assim. Num minuto estava no armário, no outro ao abrir a porta tudo havia sumido. Agora ela se dera conta daquilo e resolveu ficar ali, até o objeto sumir. Não trocou de roupa, não desceu para o café. Fingiu apenas que queria dormir mais e deitou-se escondendo a concha junto de si, sob os lençóis. Ficou observando os contornos da concha, memorizando sua cor e aguardando.
Então, aconteceu. Num piscar de olhos sumiu de sua frente. Ela recuou o corpo assustada. Não havia dormido, tinha certeza. Foi no exato tempo de piscar os olhos. Entre um baixar de suas pálpebras, seu presente se fora e, com ele, a existência do visitante.
Sempre assim, sempre assim, nunca no mesmo lugar, nunca retendo nada. Tudo o que ele pegava era seu por poucas horas, depois ia embora. Alguém havia lhe dado algo, alguma vez? Ela pensou naquilo e, naquele minuto, tomou uma decisão muito importante.
Saiu da cama, vestiu-se, lavou o rosto, escovou os dentes, penteou os cabelos e desceu em busca do avô. O encontrou na oficina, como sempre, fazendo algum trabalho. Parou diante dele e declarou:
—Vovô, eu quero fazer um livro. — O avô a olhou tranquilamente pausando sua prensa e aguardou o resto. — Eu quero fazer um livro todo, sozinha, para dar de presente.
— Você quer encadernar um livro e dar de presente. É isso? Onde está o livro?
— Não. Eu quero um livro em branco para ser escrito. Tem de ser muito bonito e eu vou desenhar pra que o senhor saiba como tem de ser feito, mas eu preciso fazê-lo. O senhor me ajuda a fazer? — Ele caminhou até ela, se ajoelhou e sorriu.
— Claro. Vamos fazer o livro mais bonito do mundo. Eu vou te ajudar, piccola Gio. — Pousou a mão em seu ombro.
E a saga de Gio para fazer um livro se iniciou. As manhãs e as tardes se foram enquanto ela aprendia a cortar, costurar, modelar, embutir e gravar. Loredano observava o modelo que a neta desenhara a fim de saber como orientá-la e o que tinha em mãos era um livro muito criativo com desenhos e detalhes que ele nem imaginara que uma menina de nove anos poderia reter em sua mente. Era um livro médio, mas bem mais estreito que o normal e ela fizera questão de lhe dizer que era exatamente assim que deveria ser. Naquele momento o velho artesão já sabia algo que a menina Gio só descobriria anos depois: ali estava uma artesã.
Naquele tempo algo mais moveu a menina. Uma urgência não apenas ligada ao fato de que as férias estavam acabando, mas fazia dias que o visitante não aparecia. Depois de seu presente a ausência veio em seguida e Gio temeu que aquilo fosse algum tipo de despedida. Ela se esforçou imensamente para fazer tudo e mesmo quando errava, refazia, algumas vezes com lágrimas contidas nos olhos. Parecia tudo tão difícil, tão complexo, mas algo em seu coração dizia que a mão do velho artesão não podia estar lá, apena a sua. Era um presente para permanecer, um pertence que ele fosse capaz de levar porque seria de fato seu.
Quando o livro finalmente ficou pronto, foi na véspera de ir embora. Havia se esforçado para terminar a tempo. Ela olhava com certa ansiedade para o livro que nem era muito grande, nem muito largo. Longo e cheio de detalhes, dourações e cores. Um exemplar com um toque infantil e que parecia reproduzir o mix de belezas que o visitante deixava no armário. Loredano pousou a mão em seu ombro e a consolou:
— Está muito bom, piccola Gio. Muito bom. É um trabalho de artesã. Todo seu coração foi posto aí e é isso que o faz profundamente belo. – A menina sorriu e beijou o rosto do avô.
— Obrigada, vovô. Meu amigo vai gostar muito —disse e sorriu indo para o quarto.
Naquela noite Gio pôs o livro no canto do armário e esperou em silêncio, mas seus olhos pesaram tanto que a derrubaram para um sono sem sonhos e só foi acordada abruptamente pelas mãos de sua mãe. Ela olhou para o armário enquanto a mãe a apressava a se vestir para partirem cedo sem pegar trânsito. As malas estavam feitas e não havia mais o que fazer ali. Ela não abriu a porta. Tinha medo de achar o livro, tinha medo dele não ter visto. Esperou e confiou que o visitante, que o amigo do armário tivesse visto. Que o tivesse pego e com ele ficasse, permanentemente. Se voltasse, com certeza estaria ali da próxima vez que viesse.
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As semanas foram passando e os dias frios foram sendo substituídos pelas tardes chuvosas e as manhãs mais quentes. Logo haveriam as festas de fim de ano e a casa dos avós estava à espera das meninas. Nina parecia ter guardado o segredo de Gio no mais profundo de seu ser, tão profundo que nem parecia ter sabido daquilo alguma vez sequer. Gio ponderou que a irmã era boa em guardar segredos.
Quando os dias das festas estavam chegando elas embarcaram no carro e partiram com os pais para a esperada visita aos avós. O coração dela estava aos pulos numa mistura de ansiedade e alegria. O que teria acontecido?
Assim que o carro estacionou, as meninas pularam do veículo e correram para a porta da antiga casa. Abraços foram dados e Gio olhou para as escadarias. Num impulso apertou o passo para o segundo andar enquanto ouvia a avó comentar sobre alguma surpresa.
A mão girou a maçaneta e ela entrou procurando o armário, mas não havia mais nenhum.
Sua mente levou alguns segundos para entender que o quarto havia sido redecorado parcialmente. A poltrona e a cama ainda eram as mesmas, mas no lugar do armário repousava uma grande e mais moderna cômoda e agora um outro armário embutido fixava-se próximo à entrada, longe de seus olhos.
O armário onde ele se escondia, onde ele colocava suas coisas preciosas não estava mais lá.
Gio abriu o outro armário novo e impessoal, tudo estava limpo e vazio. Nenhum botão, nenhum selo, fita ou muito menos seu livro. Uma lágrima deslizou silenciosa por seu rosto. Sua avó entrou e notou a expressão vazia da menina ao olhar o espaço onde o antigo armário ficava.
— Não gostou, Gio? Olha, agora tem um armário novo e embutido aqui. Bem maior para suas coisas, minha querida — observou a menina que começou a chorar e sentou-se no chão. — Gio! O que foi? Porque está chorando?
— Onde está? Onde está... o armário? — ela só conseguiu dizer aquilo.
— Ah. Ele estava muito velho e nós o doamos. Arrumamos os quartos para você e Nina. Achamos que vocês iam gostar. Não gostou? Preferia o outro armário?
— E o livro?
—Que livro?
— O que... estava... no armário.
— Não havia nada no armário, minha querida. — a avó a ajudou a sentar-se na cama e Gio limpou os olhos.
— Não? Será que ele ficou com o livro?
— Quem ficou com o livro?
— Ele... el... — Gio continuou a soluçar por um bom tempo.
O armário se fora, o livro se fora, o visitante se fora.
Não apareceram fitas ou botões no novo armário. Nada voltou e Gio nunca soube o nome do seu amigo do armário. Ela nunca teve coragem de saber se ele tinha mesmo um nome.
O visitante nunca mais veio.
Giovanna cresceu.
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