Naquela noite Gio voltou para casa e imaginou que deveria ser quase meia noite. Não quis acordar Nina e apenas deitou-se por alguns segundos em sua cama. A noite estava bem clara e só queria descansar um pouco. Pareceu que tinha trabalhado por vários dias. Talvez fosse o efeito colateral por ter usado seu próprio Gnósis daquela maneira, tentando algo tão complexo. Talvez precisasse de mais treino, mas algo lhe dizia que não havia tanto tempo. Se ela tinha um Gnósis tão forte realmente não demoraria para ser notada por outros biblios.
Em sua mente ainda ressoava a conversa que tivera com Poliphilo ao responder suas perguntas, logo após comprovada sua teoria.
Agora ela sabia que os biblios nasciam em Imaginarium e eram acolhidos por outros biblios mais velhos até serem capazes de controlar suas habilidades. Que a aparência como nasciam era geralmente adulta, mas existiam biblios de muitas formas e aparentes idades comparáveis aos humanos, embora pudessem mudar isso com o tempo, caso vivessem o bastante para controlar. Que alfarrabistas também trabalham em conjunto com outros biblios, mundo afora para reconhecer Gnósis valiosos de obras que compilassem pensamentos humanos e fossem potencialmente vitais para um biblios existir. Eles eram quase guardiões da memória criativa humana escrita nas mais diversas formas.
Como os humanos eles não sabiam quanto tempo viveriam. Poderia ser centenas de anos ou dias. Era uma existência que eles tentavam prolongar protegendo a criatividade humana. Também, como os humanos, cada biblios era único e, embora muitos tivessem poderes comuns, outros tinham habilidades únicas, como o pequeno Salomon ou o Ourives, que ela ainda não conhecera pessoalmente.
Era animador saber que Poliphilo estava impressionado com o que vira ela fazer, mas ela, por sua vez, ficara assustada ao notar que ele parecia repentinamente, cansado ao extremo. Teria afetado seu Grimoire a ponto de exaurir Poliphilo também? Ele lhe afirmara que não, no entanto quando começaram a falar sobre Salomon, ele pegou seu Grimoire e o estendeu novamente para ela.
— Guarde-o para mim no lugar mais seguro de sua mente. Quando precisar pedirei por ele — dissera abruptamente deixando Gio sem palavras. Ela queria retrucar, mas algo nos olhos de Poliphilo a fez apenas concordar em silêncio, como se, pela primeira vez ela conseguisse ler através do reflexo de ouro que passava por sua íris, como um criptograma escrito dentro de um livro.
Por um momento ela teve a impressão de que o tempo de Poliphilo também estava se esgotando e nesse exato momento seu Grimoire estava alojado na memória mais especial de Giovanna; dentro do armário onde o visitante se escondera, em sua infância.
Pensou em trazer o Grimoire para observá-lo com mais cuidado, mas seus pensamentos foram interrompidos por um som oco como um rugido vindo de algum lugar fechado. Apurou os ouvidos para identificar de onde vinha o mesmo e constatou com certa humilhação que era seu estômago roncando. A verdade era que não comera nada desde que saíra de casa pela manhã e em Imaginarium a sensação de fome parecia ser suprimida. Apenas agora seu organismo dava sinais de queixa pelo interior vazio. Levantou-se caminhando pé ante pé com o objetivo de fazer uma incursão até a cozinha para realizar um saque noturno.
Abriu a geladeira e caçou algumas guloseimas para fazer sanduíches. Cuidadosamente procurou café na garrafa térmica e montou seu pequeno lanche num prato. Colocou-o sobre a mesa e voltou para buscar sua xícara esquecida sobre a bancada da pia. Assim que se sentou, olhou com um ar satisfeito para seu pequeno engenho culinário de emergência e deu uma mordida no primeiro sanduíche. Ergueu os olhos, mastigando devagar para apreciar o sabor, no entanto eles encontraram algo que a deixou paralisada por alguns segundos.
Exatamente no lado oposto da cozinha, num canto, ele estava lá. Parado, com seus mais de dois metros de altura, encurvando o corpo, com a cabeça facilmente tocando o teto. Seu silêncio mostrava que observava tanto quanto era observado.
Gio rapidamente desviou os olhos para sua xícara de café tão negro quanto o manto e todo o resto que envolvia aquele ser. Tentou disfarçar e bebeu um gole, fingindo que não o via. Forçou-se a continuar a mastigar enquanto sua mente funcionava a mil. Como previra, à medida que usava mais sua energia, as habilidades iam se refinando e agora podia sentir aquela Gnósis vibrando para ficar invisível de forma tão nítida como podia sentir seu próprio coração batendo. Não conseguia explicar bem a sensação, mas sabia que era assim, e agora, independentemente de como biblios ou necromons vibrassem, eles não conseguiam escapar ao seu olhar.
Pelo canto dos olhos observou aquele imenso e silencioso ser. O volumoso capuz que cobria toda sua cabeça e descia sobre os ombros apenas revelava uma máscara com bico de pássaro, muito antiga, que lhe dava um ar ainda mais pitoresco. As largas mangas de sua túnica estavam unidas num gesto monástico, escondendo as mãos e nada de sua aparência real podia ser vista. Aquilo lhe trouxe uma sensação recente em sua memória, mas seu instinto lhe dizia algo muito mais forte: aquele que estava diante dela deveria ser Nômade e isso a deixou mais tensa. Talvez o primeiro dos necromons que surgira estivesse ali, alguém com milhares de anos e tão antigo como o lendário Nabu.
Baixou um pouco os olhos ao morder o sanduiche e um disparo de adrenalina percorreu seu corpo ao ouvir uma voz grave, mas muito macia ressoar pelo ambiente.
— Você pode me ver, Gnóstis. — Aquilo não era uma pergunta, mas uma afirmação dita com profunda certeza. Ele não havia mudado sua vibração para ser avistado, ele estava simplesmente constatando que ela tinha aquela habilidade. Gio levantou os olhos e se endireitou na cadeira para olhá-lo diretamente. Não fazia sentido fingir.
Suas mãos finalmente se revelaram e ela observou com certo choque a pele translúcida, assim como músculos, que insinuavam a visão de parte das veias num tom desbotado. Num primeiro segundo aquilo poderia causar repulsa, mas ela envergonhou-se daquela sensação ao lembrar-se das palavras de Poliphilo sobre eles: “algo lhes falta.” Nunca imaginaria que a definição poderia ser tão literal. Os necromons pareciam quase como fantasmas do mundo dos biblios.
— Saudações. Eu sou Nômade, dos necromons. — Sua mão se movimentou até o peito com uma elegância natural e apresentou-se sem medo, anunciando com sua voz e gestos não apenas um indivíduo, mas todo um modo de proceder. Não havia brusquidão em suas maneiras, mas as mesmas mãos que pareciam extremamente frágeis se moviam como detentoras de poderosa musculatura e vontade. Apesar dos trajes parecerem desgastados, como tudo que dizia respeito aos necromons, aquele ser tinha uma presença impactante que não passava despercebida. Gio só vira biblios como Poliphilo e Elzevir que pareciam sentir-se confortáveis com estaturas convencionais e nunca tivera muito tempo para pensar que poderiam haver muitos outros com dimensões bem maiores. Nômade parecia um ser saído de uma era de mitos antigos, como gigantes ou titãs. Talvez Ganesha também fosse como ele. Ele parecia se mover cuidadosamente dentro da cozinha, tentado se encaixar no pequeno ambiente.
Ela se ergueu devagar da cadeira e sorriu um pouco, repetindo o mesmo gesto dele com a mão. Sentiu que lhe devia aquela cortesia.
— Eu... sou Giovanna, uma artesã. É uma honra conhecer você, Nômade, dos necromons. — Sustentou um sorriso sincero para aquela máscara antiga e misteriosa.
Inesperadamente ele colocou a outra mão no joelho e dobrou-o, apoiando-se sobre ele, num antigo gesto cortês. Enquanto fazia isso seu longo manto se movia como uma névoa ao seu redor produzindo um efeito de moldura para aquela forma grandiosa.
— Eu vim pedir ajuda. Ajude minha gente, Gnóstis, por favor. — Sua voz silenciou-se, mas as palavras reverberaram mil vezes dentro dela. Uma sensação de tristeza profunda a tomou e só então percebeu que estava conectando-se ao Gnósis daquele ser. Conseguiu sentir uma impressão que lhe era familiar; a mesma sensação que tivera ao perscrutar os livros Sumidouros na Fortaleza dos Esquecidos; o medo, os séculos de escuridão e a urgência em sobreviver mesmo com todas as limitações que eles possuíam. No entanto, ao contatar aquela Gnósis sentiu toda a força que havia dentro daquela forma, esperando despertar. A energia de Nômade tinha uma natureza impressionante de transformação. Ele era literalmente como uma crisálida a espera de sua finalização. O impacto daquela informação a deixou sem palavras. Agora estava diante dela e realmente viera buscar ajuda, acreditando que ela poderia ser a pessoa adequada.
Sem perceber lágrimas começaram a brotar de seus olhos enquanto caminhava na direção dele. Tocou sem medo a imensa máscara e desmanchou-se num choro que lhe parecia ser uma confissão de impotência para com aquele ser. Contudo, como resposta, sentiu aquelas grandes mãos translúcidas envolvendo as suas, num gesto reconfortante de proteção. Eram mãos cálidas e macias que, apesar de tudo, ainda continham generosidade em seus gestos. Ele também era capaz de ajudar e provavelmente fizera isso por muito tempo já que era o mais antigo de todos os necromons.
— Você é o primeiro humano a quem me apresento em muito, muito tempo. O livro que fiz conseguiu realizar o objetivo a que se propôs — declarou.
— O livro foi feito para mim?
— Na verdade foi para você e Poliphilo, o biblios. Eu já a havia localizado há algum tempo, mas não podia me apresentar de forma apropriada diante de você sem a interferência de um deles — explicou calmamente. — Eu imaginei que se levasse um livro até você isso precipitaria o encontro de ambos, já que Poliphilo conhece meu objetivo. O tempo é mais curto do que ele imagina.
— Por quê?
— Com quem você está falando? — a voz de Nina a arrancou daquela interação de forma abrupta e ao olhar novamente para onde seu visitante estivera agora só havia um espaço vazio. Imaginou o quanto arredio aquele ser era para desaparecer mesmo não sendo visível para a irmã. Olhou para ela, parada na porta da cozinha e deu um sorriso cansado. Ambas se abraçaram em silêncio. — Que foi? Que foi? Que é?
— Sinto como se carregasse um mundo inteiro nas costas, de repente.
— Alguém te fez mal?
— Alguém ficou mal por muito tempo e isso me fez mal também.
— Oh, Gigi...
— Eu consegui falar com Nômade. Ele estava aqui — disse num sussurro como se desejasse que suas palavras só fossem ouvidas por Nina. — Eu senti o peso de sua responsabilidade e entendi o medo dos necromons ao me conectar ao seu Gnósis. Eles precisam de ajuda e acho que Poliphilo também. — Afastou-se e começou a caminhar num passo apressado de volta para o quarto com a irmã no seu rastro. — Preciso voltar lá. Preciso pegar a arca segredo e me encontrar com Nômade outra vez.
— O que está acontecendo? — Ela a viu entrar no quarto e vestir um casacão enquanto procurava por sua bolsa com as anotações dentro e o celular. Viu que ainda havia bastante bateria.
— Eu vou contatar você. Vai estar tudo bem. Isso não pode esperar. Precis… — Cambaleou, perdendo o equilíbrio e apoiou-se na cabeceira da cama. O que era aquilo agora? Sentiu a mão de Nina segurando seus ombros e fazendo-a sentar-se.
— Você não vai a lugar nenhum! Não sei o que andou fazendo lá, mas parece exausta — sentenciou — Vai ficar aqui e descansar por esta noite. O que quer que esteja acontecendo, não vai mudar nada você ir até lá nesse estado.
— Nina…
— Eu sei que tudo isso parece urgente, mas está rápido demais. Você parece ter gasto muita energia lá.
— Tem coisas que eu preciso saber...
— E vai saber, mas precisa de descanso. Vamos fazer o seguinte: você vai deitar aqui e eu vou te trazer uma caneca de chá. Se quiser conversar, ok, mas por hoje chega de passagens mágicas e mundos mirabolantes. Isso não é uma sugestão — enfatizou com um ar de autoridade.
Gio suspirou e deixou todo seu esgotamento transparecer como se pudesse ser exalado. Passados os primeiros minutos sentiu seu corpo frio e sentou-se em silêncio na cama, enquanto Nina a envolvia com um cobertor e saía para preparar algo.
— Não se atreva a não estar aqui quando eu voltar — ameaçou como uma mãe faria.
Gio concordou com um vago acenar de cabeça e a recostou no travesseiro. Imaginou que seus olhos cerrariam pelo peso do cansaço, mas não foi assim. Sua cabeça vagava entre dúvidas e sensações. Já estava cansada, provavelmente, pelo esforço que havia feito. Era lógico que não ficaria imune a um esforço tão grande feito em Imaginarium. O fato de desenvolver as habilidades com certa rapidez não significava que ela não pagaria o preço disso. Precisava se preparar melhor.
Havia também o contato feito com Nômade. Percebeu que sua conexão feita com o Gnósis dele fora quase instantânea e ela não havia controlado nada. Recebera o impacto de uma carga emocional de séculos e aquilo equivalia a um senhor nocaute. Não poderia aparecer assim diante de Elzevir e muito menos de Ganesha.
Fechou os olhos e concentrou-se em sua respiração. Só desejava que Nômade não tivesse partido. Ele voltaria? Era um ser arredio e cauteloso. Com certeza deveria ter seus motivos. Seu Gnósis parecia extremamente forte, possivelmente maior que Elzevir e outros.
Onde você está. Como vou te encontrar?
Esse pensamento fluiu em sua mente antes de cair num sono profundo.
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Eu lamento tê-la feito sentir-se mal, Gnóstis. Não calculei bem seu estado ao voltar de Imaginarium.
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A voz soava como o vento que fazia serpentear campos de trigo numa tarde primaveril. Era Nômade novamente, mas ele não estava mais no quarto de Gio, aliás, nem ela se encontrava lá.
Quando seus olhos abriram devagar, percebeu que estava em outro ambiente.
Não era seu quarto, tampouco uma biblioteca ou algum lugar que remetesse à Imaginarium. Antes era uma antiga construção, talvez uma igreja abandonada em algum lugar do mundo, ou seria mais um ambiente criado?
Percebeu-se sentada sobre uma murada em ruínas e podia ver a nave abandonada de uma catedral com espaços onde, algum dia, grandes janelas góticas haviam se erguido. Dali também enxergava uma paisagem marítima. A luminosidade fazia parecer que o dia ainda não se escondera de todo para dar espaço a escuridão noturna. Uma solitude calculada emanava do lugar como uma pintura cuidadosamente criada e foi aquilo que a fez confirmar:
É um ambiente criado.
Podia ouvir o marulhar das ondas à distância fazendo fundo a um ou outro som esparso, como a brisa entre as árvores, que cresciam indiferentes aos alicerces que estavam ali, ou o revoar de algum pássaro solitário.
— Aqui não é Imaginarium. Onde estamos? — perguntou por fim.
— Aqui é um espaço entre a realidade e seus sonhos. — Nômade surgiu, desta vez, não encurvado para caber no cenário anterior, que parecia minúsculo para ele, mas ereto e pleno em sua estatura, ou para Giovanna era assim. Tinha tranquilamente três metros, mas seus movimentos eram lentos e tranquilos. O manto continuava a dançar ao redor de seu corpo como uma extensão dele mesmo. A grande máscara negra com bico de pássaro a observava fixamente. Mãos unidas e em repouso esperavam pelas próximas palavras para se mover em sincronia, como fizera antes. Suave, comedido, mas poderoso.
Novamente seu Gnósis veio até ela, mas agora se fechou, sentindo aquela energia bater como uma onda do mar para reverberar no ar de maneira graciosa. Nômade recuou um pouco, como se tentasse diminuir o impacto do contato.
— Seu Gnósis é poderoso, mas agora parece mais fraco. Como fez isso?
— Eu o espalhei pelo ambiente. Isso é possível na camada onde estamos. Vejo que absorveu o primeiro impacto e isso a debilitou. Acredito que tenha feito uma leitura chocante de minha energia — concluiu.
— Realmente fui pega de surpresa. Eu não esperava vê-lo e me mantive aberta. Acredito que estava despreparada para o que senti. Havia muito… - ela parou para tentar encontrar uma palavra, mas moveu a cabeça numa negativa silenciosa.
— Havia muito, de fato. Foi minha culpa tentar lhe impingir o peso que carrego por milhares de anos. Talvez eu possa estar ansioso e isso me parece inusitado. Depois de tanta espera eu posso estar diante de um humano, uma Gnóstis… e ser visto.
— Eu não me atreveria a imaginar como é. O pouco que pude sentir foi devastador. — Baixou um pouco os olhos — Perdoe-me por parecer tão fraca.
— Você é extremamente forte. Apenas lhe falta a experiência — comentou enquanto se aproximava novamente. Sentiu que ele tomara cuidado para manter sua Gnósis esparsa sem que pudesse causar o efeito anterior — Imagino que tenha ido até Imaginarium e visto onde ficam os nossos livros.
— Sim. Poliphilo os guardou numa grande biblioteca. — Não quis mencionar que o nome era Fortaleza dos Esquecidos. Talvez não fosse gentil dizer aquilo, mas ficou surpresa ao ouvir esse nome ser pronunciado por ele.
— A Fortaleza dos Esquecidos. Sim, eu sei que o Alfarrabista dos Mortos cuida de nossos livros. — Parou pensativo e depois continuou. — Deve estar surpresa por eu saber tanto, mas entenda, passei minha vida ouvindo os outros. Sei mais dos biblios que eles de nós.
— Você já esteve em Imaginarium? — No momento que fez a pergunta achou-se tola por dizer algo assim. Necromons não conseguiam ir para Imaginarium.
— Sim, estive. — Aquilo a pegou de surpresa. — Por alguns segundos eu pude ver tal lugar, mas isso foi há algumas centenas de anos. Acredito que Imaginarium se tornou um ambiente muito mais complexo à medida que a criatividade humana se expandiu. Nabu me levou para ver um pouco, mas como sabe necromons tem uma natureza inconstante para certas coisas. Do mesmo modo que não podemos ficar em Imaginarium, não podemos reter objetos conosco ou ser vistos por biblios, nem humanos. Vibramos numa faixa de existência diferente.
— Pensei que talvez pudessem aparecer para humanos.
— Por alguns segundos, mas é um gasto de energia que não vale a pena. Passamos a maior parte do tempo invisíveis. Alguns podem mover objetos ou interagir com pessoas, mas isso não é algo muito benéfico para nós.
— Soam como fantasmas.
— Mais que isso. Interferir na sua realidade demanda uma Gnósis forte e, entre nós uma Gnósis forte pode ser fatal. A camada da realidade é onde vivemos, mas ao mesmo tempo não é nosso lar. Biblios não podem nos ver e humanos nos veriam como monstruosidades, fantasmas ou demônios. O nome que desejar dar — continuou. — Eu sou um sobrevivente, Gnóstis. Aprendi a esconder meu Gnósis e dissipar minha força em camadas como esta que estamos agora. Aqui é como fosse meu Imaginarium particular. Foi assim que sobrevivi.
— Os livros, eu senti que eram feitos por mais de um necromon. Isso tem a ver com o que me falou sobre nem todos terem um Gnósis forte? Porque gastar energia fazendo Sumidouros? Senti como se fossem… armadilhas. É isso?
— Os Sumidouros são um esforço conjunto, feitos de tempos em tempos para proteger livros e os próprios necromons. — Aproximou-se dela e agora sua sombra cobria todo o corpo de Gio como uma grande nuvem de tempestade escurecendo o dia. — Entenda, o Medo é uma poderosa ferramenta que distorce as camadas da realidade. Se a Gnósis cria as camadas imaginativas do mundo, preenchendo aquilo que chamam realidade, o Medo tem um poder equivalente. O que faz pender para um lado ou outro é o modo como lidamos com ambos.
“Você pode acreditar que o Medo não é capaz de gerar nada, mas ele impulsiona o Vazio e o Vazio se alimenta da Gnósis. O Vazio teme e precisa da Gnósis, por isso ele a busca em sua forma inerte, quando ainda não está em movimento, como na energia primária dos livros e… nos necromons.”
— Mas os necromons não estão inertes, apenas algo…
— ...lhes falta. Sim, eu sei o que Poliphilo lhe disse — confessou. — E é justamente nessa lacuna que o Vazio se volta para nós e… devora-nos. — Nômade silenciou-se enquanto Gio pensava em suas palavras.
— Está me dizendo que algo está matando necromons?
— Esse algo nos caça por séculos, não apenas os livros com grande Gnósis inertes, mas minha gente. Os Sumidouros são armadilhas com energia Gnósis conjunta como um chamariz, para distrair o Vazio e nos dar tempo de sairmos. Infelizmente os livros que são identificados nem sempre podem ser deslocados. Podemos mover objetos, mas eles voltam para seu local original. Com sorte não haverá um predador na volta ou um biblios ache o livro antes. Os alfarrabistas são muito importantes nesse ponto.
— Os livros que encontrei na biblioteca, alguns ainda tinham um pouco de energia, mas a maioria estava vazia. O Gnósis que havia neles se foi?
— Os vazios cumpriram sua função, mas Poliphilo tem o poder de achá-los mesmo assim. Isso me faz duvidar que toda Gnósis deles esteja extinta.
— Talvez… - uma ideia veio à mente dela — … só talvez, os livros Sumidouros possam ter uma segunda leitura que só um Gnóstis possa fazer, assim como posso ler os Grimoires. Poliphilo pode ter um poder maior do que pensa, ele pode detectar esse poder interno, mesmo que não possa lê-lo.
— É uma possibilidade, contudo deve se lembrar de que estes livros produzem efeitos adversos em humanos. Talvez não seja uma tarefa segura lê-los.
— Mas você deixou um livro para mim. - Fitou a máscara inerte que moveu a cabeça em lenta concordância.
— Aquele livro foi feito para Poliphilo se aproximar de você. Eu não permitiria que o abrisse — explicou — Se fosse necessário eu o retiraria dali, mas consegui contar com a habilidade de ambos: de você senti-lo e do alfarrabista capturá-lo.
— Gastou muita energia nisso.
— Vale a vida de cada necromon. — O timbre de sua voz pareceu ecoar com aquela certeza. Voltou-se para a paisagem que simulava agora um início de anoitecer. — Já ficou bastante neste lugar. Deve repousar por agora. Nós voltaremos a nos ver.
— Espere! Sobre Poliphilo, você falou que havia pouco tempo… - estendeu a mão na direção dele e foi a última coisa que viu.
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Pergunte a Elzevir.
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A luz matinal a atingiu com suavidade através das cortinas brancas, mas sentiu o corpo dolorido. Havia dormido numa mesma posição por muito tempo. Olhou ao redor e percebeu que ainda estava com a coberta que Nina colocara sobre ela e uma xícara de chá fria repousava na cômoda próxima a cama. Ela não a acordara por fim e graças a isso tivera a experiência mais incrível conversando com Nômade entre camadas num espaço criado só por ele. Com certeza era um ser poderoso como os biblios que já vira, mas estava na outra ponta do tabuleiro. O rei negro esperava para se aproximar do rei branco, assim como Nômade calculara tudo para poder chegar até os biblios através dela.
Apesar da cãibra, sentia-se descansada. Olhou pela janela e sorriu ao ver Nina regando a horta com a disciplina de sempre. Levantou-se e caminhou para o chuveiro. Enquanto a água caía sobre sua pele revivia sua conversa com Nômade. Ele falara do Vazio, mas não dera um nome. Havia um nome para aquilo que parecia impalpável? Para o que perseguia os necromons?
Enquanto conversavam, a toda menção das habilidades dos necromons, Gio tinha cada vez mais certeza que o visitante de sua infância era um deles. Tudo batia: não poder ser visto, não falar, guardar coisas que depois sumiam. Agora era quase certo: ela conhecera um necromon quando criança e, além do que Poliphilo queria ou Nômade desejava, precisava saber o que aconteceu com aquele ser. Imaginou quanto Gnósis ele deveria ter para ficar aquelas noites no armário batendo na porta e respondendo suas perguntas. Ele teria gasto muita energia? Teria conseguido viver todos esses anos ou o que perseguia os necromons o teria pegado pelo seu Gnósis?
— Desculpe. Eu não sabia. — Fechou os olhou e deixou a água escorrer pelo seu rosto para deixar ir sua tristeza.
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Nina viu uma Gio mais revigorada descer pelas escadas e a ajudar com a cesta de frutas que pegara no pequeno pomar.
— Vou te ajudar com o café? Ainda tem pão ou vamos comprar?
— Fiz um ontem. Vamos comer. Vou tostar na chapa — Nina sorriu sempre observando a irmã.
— Vou fazer café.
— Dormiu bem. Descansou?
— Sim. Descansei… e vi Nômade novamente. — Pegou o pote de café em pó.
— Sonhou com ele? — Nina colocou as xícaras na mesa junto com os talheres e apoiou as mãos.
— Nós conversamos entre esta camada de realidade e a do meu sonho. Ele consegue criar um espaço próprio, como Imaginarium. Não se preocupe! — antecipou-se a bronca da irmã. — Eu estou bem. O que me abalou ontem foi o primeiro impacto da Gnósis dele. Depois foi tranquilo.
— Fala como se tivesse ido dar uma volta na esquina. — Pegou geleia e manteiga colocando-as pela mesa como se tentasse decorar algo, mas não tirava os olhos da irmã que ligava a chaleira elétrica. — Fale-me desse Nômade.
Gio sorriu e nas horas seguintes daquela manhã passaram conversando sobre tudo que ela descobrira. Nina mastigava como um esquilo enquanto a irmã lhe contava tudo que ocorrera desde que fora para Imaginarium no dia anterior. Uma segunda rodada de café foi necessária para processarem todas as informações e enquanto Gio finalmente enchia a boca com um suculento pedaço de pão caseiro com geleia, a irmã tirou suas próprias conclusões.
— Bom, então se você consegue ver esse tal de Nômade pra que precisam do Grimoire de Nabu?
— Existem muitas coisas que a gente não sabe e talvez o Grimoire seja a chave. Veja, Nabu teve contato com Nômade, mas não era capaz de retê-lo em Imaginarium. Poli pode sentir os Sumidouros, mesmo “vazios”, então ele parece ter um poder diferenciado. Nabu sumiu e a nossa esperança é que ele tenha deixado algo em seu Grimoire.
— Poli? Já estamos nesse nível? — Nina fez uma careta maliciosa e Gio se ajeitou na cadeira, nobremente mostrando a língua para a irmã. — Há! — pegou um biscoito derradeiro de uma lata e mordeu. — Ok. Então o Grimoire ainda tem seu papel, seja lá qual for. Nômade soltou esse papo transcendental de “vazio” pra explicar que os necromons estão na pior, elevada a décima potência e o “Poli”— deu uma ênfase caricata no nome que fez Gio quase cuspir seu café num riso involuntário. — parece estar numa situação não muito boa. Aí ele solta um “Fale com Elzevir” como se te encaminhasse para o SAC. Genial — concluiu.
— Suas sínteses sempre foram encantadoras. — suspirou — Entenda que foi num espaço curto de tempo. Acho que para Nômade, apesar de ter uma Gnósis poderosa, pode ser trabalhoso me manter na camada que criou. Lembre-se que necromons não conseguem reter nada por muito tempo.
— Verdade! — Sacudiu o dedo ao se lembrar do fato. — O que nos leva até... o visitante. Realmente acha que podia ser um necromon?
— As características batem muito, mas não sei se ele ainda está vivo. — Sua voz pareceu sumir ao pronunciar a última parte. Nina permaneceu num silêncio respeitoso enquanto ela continuava. — O que eu sei é que preciso falar com Elzevir, mas não sei se o Grimoire de Nabu pode nos dar todas as respostas. Talvez... se eu pudesse ter acesso aos textos que falam de Nabu ou talvez se eu pudesse ler os Sumidouros. — Parou no minuto que Nina fez uma careta.
— Nem pensar! E se esses negócios apagarem sua memória?
— Pode ser que eu faça uma leitura diferente deles.
— E pode ser que não. De qualquer forma, como ler Sumidouros poderia ajudar nisso?
— Pelo menos eu conseguiria saber exatamente o que é esse Vazio a que Nômade se refere.
— O que ele faz parece ser uma descrição muito boa do que é. Ainda é mais seguro ir até o “rei da festa a fantasia” — concluiu.
— Tenho certeza de que Elzevir vai gostar desse epíteto. — Sorriu e levantou-se para finalmente limparem tudo. No final já era quase meio dia.
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