Aquele caminho revestido de livros era uma mera metáfora alegórica comparada ao que viu a seguir. Ao contrário da majestosa nave que estava recoberta de vitrais, estantes com livros e pergaminhos raros espalhados por móveis, num cenário grandioso, ali havia uma biblioteca pouco iluminada e preenchida por estantes muito pesadas com centenas de livros de aparência decrepita, presos as prateleiras por correntes. Estas tinham aspecto novo e firme, como se nunca perdessem seu viço com os efeitos do tempo. Observou com cuidado que as estruturas das estantes eram bem altas e seria necessária uma escada para chegar ao volume na última prateleira. Havia uma luz tênue, mas nada de velas ou candelabros deslumbrantes como nos domínios de Elzevir. Olhou para o alto e então pode ver que o teto era composto de cúpulas de vidro cuidadosamente montadas dando o aspecto de várias gaiolas unidas entre si por veios de metal negro. Sim, como se o teto fosse um conjunto delas e, unidas desse modo, formassem um lugar imenso, uma grande prisão. Os Sumidouros ficavam ali, todos presos com correntes, como pássaros em cativeiro. Então este era o domínio do Alfarrabista dos Mortos?
Parecia tão desolador, tão silencioso e solitário. Não combinava com as cores que Poliphilo mesmo carregava em si. Este era seu domínio?
Observou os Sumidouros de perto e notou que aquele aspecto decrépito tinha as mesmas características do livro de Nômade. A natureza de todos os livros dos necromons era ter aquela aparência. Seus dedos deslizaram sem tocar nos volumes e deu um passo pra trás ao sentir as correntes tilintarem delicadamente como que sentido sua presença. Ela mesma fazia isso ou era uma resposta natural das cadeias à sua proximidade?
Parou a mão com a palma estendida sobre uma das estantes e tentou sentir aqueles livros. Ao contrário do livro de Nômade aqueles pareciam ter perdido há muito o Gnósis original que os tinha feito, como se fossem cascas vazias.
Caminhou devagar percorrendo alguns corredores até sentir um livro ou outro com um leve Gnósis ainda a pulsar. Quando identificou um que parecia mais intenso, parou e fechou os olhos para ter alguma pista. Ele lhe diria algo como o livro de Nômade ou o Grimoire de Poliphilo?
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Começou muito devagar e depois foi ficando mais nítida. A sensação de profundo medo percorreu seu corpo e a urgência de sair dali era imensa. Um instinto de sobrevivência mais profundo, não seu, mas de alguém, fez a adrenalina disparar por seu corpo e um murmúrio distante chegou até ela de algum tempo passado. Sua mão afastou-se como se tivesse levado uma breve descarga elétrica.
Ali não haviam palavras sendo sussurradas pedindo algo ou lhe oferecendo frases convidativas. Ali só havia medo, muito medo e o gérmen de um entendimento começou a nascer dentro de si: aqueles livros tinham uma função bem definida e o aspecto de defesa era muito forte. Eles pareciam ter sido feitos para proteger um ou muitos de algo, e esse algo era realmente assustador.
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Seus pensamentos foram interrompidos por uma inesperada interferência externa. Algo mais real que as sensações que acabara de experimentar, fazendo a adrenalina novamente lembra-la de sua existência.
O tilintar das correntes que parecia ocorrer pela proximidade de suas mãos cessou assim que ela as afastou ao ouvir uma voz:
— Quem está aí? — aquela voz não era de Poliphilo, disso ela tinha certeza. Havia um calor na voz dele que nesta estava totalmente ausente. Era um tom delicado, mas frio, firme e pouco convidativo.
Ela estava no fim de um dos corredores de estantes observando o extremo oposto quando viu uma névoa fria que parecia deslizar pelo chão buscando e farejando o ambiente como algo vivo. À medida que ela observava a névoa deslizar tocando correntes e buscando entre as brechas, Gio ia recuando até ficar na lateral da estante, olhando cuidadosamente, pronta a correr para o sentido oposto de onde vinha a voz.
Ela não conseguia ouvir sons de passos e isso a deixava ainda mais tensa.
Finalmente quem comandava a névoa surgiu no extremo oposto do corredor observando com tranquilidade o ambiente, como quem não tinha pressa e sabia haver alguém, mas sendo cuidadoso o bastante para não assustar sua presa. Gio ficou surpresa com a aparência do biblios que estava ali. Este se vestia com um longo e elegante hanbok[1] negro que denunciava a origem de seu Gnósis, assim como seus traços orientais. Usava um coque feito de forma despreocupada e tinha belas mechas negras que emolduravam um rosto de traços elegantes e delicados. Seus olhos de um profundo tom escuro procuravam com cautela e em sua mão direita uma longa e brilhante espada estava desembainhada. A bainha estava presa na faixa de seu traje junto com um lindo norigae[2] esculpido em puro jade branco.
Era impressionante e um tanto intimidador apesar da aparência jovem. Os olhos dela não conseguiam desviar-se da espada que estava em sua mão porque ela conseguia detectar uma enorme emanação de Gnósis vinda dela.
Aquilo é o seu Grimoire!? Ele tem uma espada que é seu Grimoire? Biblios podem fazer seus livros terem outros formatos que não apenas o que eu vi?
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Quando ele lançou seu olhar para o corredor Gio escondeu-se e prendeu o ar, quase desejando não precisar respirar. Sentiu-se uma profanadora num lugar sagrado e começou a afastar-se o mais rápido que pode para abrir uma passagem e sair dali.
Naquele minuto só desejou estar longe e voltar para sua casa. Não lembrava exatamente como, mas quando abriu os olhos estava em seu quarto. Olhou para a estante ao lado da varanda e ainda podia ver uma luminosidade marcando o que deveria ser a moldura de sua passagem se desvanecendo.
Caiu na cama e ficou olhando a estante por um longo tempo. Nada veio em seu encalço. Ele conseguiria rastreá-la ou isso era uma das vantagens de ser uma Gnóstis? Quem era aquele biblios e porque ele tinha uma espada? Porque ele estava onde ficavam os domínios do Alfarrabista dos Mortos? Seria ele outro alfarrabista?
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Em Imaginarium as botas negras de Su Won pararam diante do último lugar onde Gio havia estado. Ainda podia sentir um leve rastro ali e lhe pareceu que um biblios que ele desconhecia estivera na Biblioteca Alfarrabista dos Mortos, mas não era Poliphilo.
Seus olhos se estreitaram tentando captar o caminho, mas alguma coisa impediu de detectar o rastro. Era aquele lugar; muitos livros de necromons juntos produziam o efeito de inviabilizar o rastreio da passagem feita por qualquer biblios. Suspirou e guardou sua espada na bainha. Olhou para o alto e resolveu continuar sua busca, pacientemente.
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Deitou na cama com as mãos sobre o peito e fechou os olhos. Sentia-se exausta de repente e imaginou se tinha sido prudente ir até Imaginarium duas vezes num dia só. Talvez fosse só falta de costume porque agora havia uma tensão muscular morando em seus ombros que lhe fazia parecer ter trabalhado horas e horas com grande força física. Depois do primeiro impacto do que vira na biblioteca do Alfarrabista dos Mortos, o receio de ser seguida começou a desaparecer e seus olhos foram se cerrando para ceder a um sono profundo e inesperado.
Acordou com leves toques na porta de seu quarto e uma voz familiar.
— Gio, não vai trabalhar? — era Nina que a avisava enquanto entreabria a porta para ver se a irmã estava bem.
Gio sentou-se de um salto e olhou a irmã, para depois localizar seu despertador na cômoda. Havia apagado e dormido a noite toda na mesma posição. Estava quase na hora em que saía. Ia se atrasar, com certeza.
— Ah! Droga! Sim, vou. Perdi a hora! – Levantou-se e foi para o armário pegar uma muda de roupa.
— Tudo bem? Sorte sua que hoje vou à convenção, senão ia sair cedo e você ia ficar aí. — comentou enquanto via a irmã correr para o banheiro.
— Tudo bem! Sim, esqueci que você tinha convenção hoje. Vou me arrumar! — Fechou a porta e apressou-se pra tomar uma duchada rápida.
— Estou indo! Tchau! — despediu-se.
— Tchau! — gritou já debaixo da água quente.
Trocou-se correndo e mandou uma mensagem pelo WhatsApp para Margarida, avisando que se atrasaria. Desceu e tomou um gole de café junto com uma fatia de pão mal mastigada e engolida às pressas.
Enquanto pegava a bolsa e saía para caminhar apressada pelas ruas numa tentativa de conseguir pegar um ônibus que miraculosamente aparecesse no ponto para salvá-la de um atraso maior, ela ainda se impressionava em como tinha desligado a ponto de nem sem mover a noite toda. Seu emocional junto com a tensão e a soma de todas as suas novas descobertas tinham sugado sua energia como se ela fosse uma bateria descarregada. Tocou um de seus ombros enquanto ajeitava sua bolsa e notou que sua tensão tinha ido embora. Pelo menos uma coisa boa.
Chegou ao serviço menos atrasada do que imaginou e teve um dia tão comum que quase estranhou aquilo. Depois de três dias tempestuosos sua vida normal agora lhe parecia até estranha. Poliphilo não surgiu nem magicamente, nem fingindo ser um humano comum. No fim do dia uma leve sensação de desapontamento a tomou e ela teve de aceitar que aquilo chegava a ser engraçado. Agora ansiava por todas aquelas descobertas incríveis, mas descobriu que o resto de sua semana estava fadado a ser imensamente comum. Não se atreveu a voltar à Imaginarium por aqueles tempos e sentou-se em sua oficina todas as noites para recapitular tudo o que lhe fora dito. Não queria estar despreparada ou confusa. Já não era aquela menina que não sabia fazer perguntas: agora ela as teria todas na ponta da língua num próximo encontro com Poliphilo, Elzevir ou qualquer outro biblios. Seu equilíbrio parecia restabelecer-se mais do que nunca quando ficava trabalhando em suas encadernações como se aquilo lhe trouxesse segurança para o que estivesse por vir. Ela sempre fora a artesã, agora era uma Gnóstis também, embora não tivesse certeza de tudo que isso significava.
Lembrou-se que Poliphilo lhe dissera sobre o pouco que os biblios sabiam sobre essa pessoa e o que ela podia fazer. Foi ali, enquanto fazia costuras nas encadernações, que chegou à conclusão de que apenas poderia saber mais se realmente continuasse indo até Imaginarium e já que Poliphilo desaparecera por aqueles dias, seu guia teria de ser outro biblios, Elzevir.
Quando terminou seu trabalho na oficina já havia tomado sua decisão. Faria uma pequena viagem até Imaginarium, mas desta vez para um lugar já conhecido: a Fortaleza do Domo. Como suas férias começariam na semana seguinte agora ela poderia fazer incursões mais imersivas já que não haveria os dias de trabalho para dividir sua atenção. Daí advinha sua segunda resolução; a de finalmente contar tudo que acontecia para a irmã.
E foi na noite de sexta feira que Gio sentou-se na biblioteca e contou para Nina tudo que tinha visto e ouvido desde sua primeira experiência. A irmã que tinha tranquilamente se acomodado numa das velhas poltronas e mastigava alguns biscoitos acompanhados de uma caneca de chocolate quente, ouvia atentamente toda a história que era interrompida por algumas exclamações que variavam entre surpresa e comicidade, típicas dela. Quando Gio terminou de contar tudo, olhou sua própria caneca, que ainda estava na metade e completamente fria.
— Então, quer dizer que você é tipo uma maga fodona no mundo deles?
— Isso é uma definição meio grosseira. — Deu um gole, confirmando a morte do chocolate quente.
— Tipo um messias? – chutou.
— Parece meio bizarro, não? Mas é meio que uma lenda entre eles — continuou. — Eu realmente não sei o que eu posso fazer de verdade se eu conseguir ler esses Grimoires.
— E por isso você quer voltar lá — concluiu pensativa. — Acredito que talvez seja o único meio de fazer isso. Não acho que vá achar algo sobre biblios em bibliotecas humanas.
— Eu nem tentei achar, mas não sei se haveriam relatos confiáveis. Acho que a fonte seria algo mais seguro de acessar, já que tenho esse poder.
— Acha que o visitante podia ser um... Como é o nome? Necr...?
— Necromon. Isso me passou pela cabeça e poderia me explicar muitas coisas daquela época. Ainda não desisti de achá-lo.
— E quando você pretende ir lá?
— Amanhã, de manhã mesmo. Sei que o tempo pode parar um pouco enquanto a passagem se abre e um biblios consegue isso. Quando Poliphilo me levou, conseguiu me trazer de volta no mesmo momento que fomos, embora tivesse passado um período em Imaginarium. — explicou. — Na noite que fui eu fiquei muito pouco tempo e não sei se quando voltei aconteceu o mesmo. Poliphilo me falou algo sobre pensar no momento da entrada ou escolher voltar no tempo como ele corre aqui...
— Eles podem ir para o passado, tipo viajar no tempo?
— Não. Eles só podem escolher fazer a passagem te levar ao momento que entrou ou ao próximo momento contando um tempo que teria passado... se o tempo corresse em Imaginarium. É muito estranho: é como existir e não existir tempo. Lá não tem tempo por isso eles só controlam o tempo que corre aqui e sempre em relação ao presente e futuro parcial... Eles não podem saltar num futuro longínquo ou voltar ao passado distante. É como se controlassem até um certo ponto, um trecho de tempo, entende?
— Acho que sim. Você falou que eles resgatam livros, esses alfarrabistas. Talvez eles tenham desenvolvido essa habilidade pra poder resgatar o máximo de livros possíveis de um lugar no mínimo de tempo. Tipo imagina eles tirando livros de um lugar que estava pegando fogo. Em vez de resgatar dez, eles poderiam voltar no mesmo momento que entraram e resgatar uns vinte.
— Acho que é por aí, mas de qualquer forma Poliphilo me falou que eles não podem segurar o tempo indefinidamente, então imagino que uma hora eles voltem até o lugar e o tempo transcorrido já seja mais adiante.
— Então, mesmo que você pudesse fazer isso. Se ficar muito tempo em Imaginarium, uma hora sua passagem vence, por assim dizer. Aí, ao invés de entrar agora e sair agora, poderia voltar só semana que vem.
— Acho que sim. — Gio sorriu com o termo “passagem vencida”. Isso era algo puramente de Nina. Incrivelmente era a expressão mais adequada para explicar aquele poder momentâneo.
— Hum... então não preciso me preocupar em cozinhar pra você — ela concluiu num tom prático e Gio jogou seu travesseiro nela. As duas riram um pouco defendendo seus pontos de vista sobre a relevância ou não de uma refeição ser deixada na geladeira. Nina, por fim, parou e olhou a irmã com uma genuína preocupação que era refletida em sua expressão. — Tem de tomar cuidado. Não quero que desapareça.
— Eu vou dar um jeito de te manter informada. Acho que deve haver algum jeito.
— Será que pega sinal de celular, lá? — ela brincou, mas Gio a olhou com um ar curioso.
— Quem sabe? — Sorriu — É algo a se descobrir.
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Naquela manhã ela pegou uma pequena bolsa, colocou algumas coisas que achou importante e passou a alça longa sobre a cabeça, cruzando-a no peito. Ajeitou os óculos limpos, o cabelo com a franja levemente armada e sorriu para o espelho do armário. Respirou fundo e viu Nina encostar na porta do quarto.
— Estou pronta — anunciou. Caminhou até a estante ao lado da janela da varanda e estendeu a mão. — Ok. Lá vamos nós. — Olhou a irmã. — Tudo vai dar certo. Quer vir? — convidou um tanto insegura, de última hora.
— Não. Tenho cinema hoje à noite e não sei se você volta hoje. — Sorriu com os braços cruzados sobre o peito. — Essa é sua aventura. Só se certifique de voltar, certo?
— Certo — concordou e sentiu a pequena mão ficar gelada. Não costumava ter suor nas mãos, mas sentiu-as úmidas. Aquela ansiedade era porque ia tentar de novo e desta vez com alguém por testemunha. Se era uma louca delirante, Nina seria sua melhor opção para comprovar o fato ou declarar a irmã doida de pedra.
Fechou os olhos e pensou em Imaginarium. Queria muito que uma passagem sensacional se abrisse como Poliphilo tinha feito.
Fortaleza do Domo, eu quero encontrar Elzevir. Por favor me leve até lá.
Pensou alguns segundos naquilo e a única coisa que ouviu foi a voz da irmã, a seguir:
— Puta merda! — Gio abriu os olhos e uma passagem bela como a que tinha visto Poliphilo fazer estava diante de si. As estantes comuns haviam sumido e uma porta secreta na estante, com outras prateleiras cheias de entalhes elegantes e livros convidava a ser aberta. Pelas frestas a luminosidade escapava esperando revelar o caminho.
— Ah, deu certo! — Deixou escapar e olhou a irmã que ainda estava parada na porta, mas com os braços dependurados como se fosse uma boneca de pano.
— Isso é sensacional. Que coisa mais legal... — deixou escapar.
— Eu estou indo. — Sorriu e acenou antes de abrir a passagem e caminhar para dentro dela. — Nos vemos logo, prometo.
Assim que Gio passou, a estante se fechou e soldou-se como um móvel maciço, como anteriormente, voltando também ao seu aspecto original. Nina correu para ela e a tocou. Nada, parecia que aquilo nunca havia acontecido. Gio simplesmente se fora por uma passagem sobrenatural como naqueles filmes em que estantes revelavam passagens, mas esta mudava de aparência para conduzir ao seu destino. O tempo não havia parado e talvez Gio não tivesse pensado em fazê-lo como ela falara que o biblios fizera. Talvez não fosse preciso. Agora ela tinha de esperar e ver quando a irmã voltaria.
— Que droga. Eu queria ver de perto os livros que tinha naquela passagem. — Suspirou e caminhou devagar saindo do quarto.
Tinha de esperar o tempo passar, ou não.
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Gio caminho pelo corredor que se abriu para a já familiar estrutura da nave central da fortaleza. Ela sorriu ao ver os gigantescos vitrais e caminhou num passo animado olhando tudo e observando as luzes que entravam coloridas pelos vidros da grandiosa construção. Em alguns lugares parecia haver feixes multicoloridos de luz e ela pensou que tudo lembrava uma tarde ensolarada depois de uma chuva rápida, quando os arco-íris se formavam no céu. Então o ambiente era mutável em Imaginarium? Aquela seria uma adorável tarde de verão? Parecia que sim.
Seus passos ecoavam pelos imensos ladrilhos de mármore que hoje refletiam um leve tom rosado. Elzevir não parecia estar à vista. Estaria num dos imensos corredores que levavam a inúmeras bibliotecas?
Cuidadosamente deixou sua pequena bagagem sobre uma bela e antiga escrivaninha papeleira em estilo inglês e caminhou observando o lugar mais cuidadosamente. Havia tanta informação visual que achou que levaria anos para conhecer tudo que estava guardado naquele lugar. Talvez uma vida toda nem fosse suficiente.
Começou a chamar pelo nome de Elzevir timidamente e encontrou um eco suave que se aprofundou a medida que seguia na direção dos imensos corredores laterais. A cada porta em que parava e abria seus olhos se enchiam de salas com novas maravilhas escondidas. De um relance percebeu que cada biblioteca atrás de cada uma daquelas grandes portas, parecia ter suas características próprias e imaginou como aquilo deveria estar dividido em tipos de materiais. Cruzou, com salas cheias de antigos e enormes incunábulos, outras com nichos feitos especialmente para pergaminhos e ficou encantada em ver que uma biblioteca parecia uma réplica de um antigo scriptorium monasterial com dezenas e dezenas de livros manuscritos a mãos em suas antigas prateleiras.
Não demorou a caminhar mais devagar porque temia se perder. O corredor parecia nunca terminar com todas as suas portas exatamente iguais. Como Elzevir sabia o que havia em cada uma delas? Seria o Gnósis que emanavam? Indo de um lado a outro em ziguezague tentava chegar a biblioteca onde havia estado da primeira vez, mas não se lembrava de ser tão longe. Parou um minuto e resolveu tentar outra coisa. Se as passagens abriam onde estavam estantes, talvez funcionasse também com as portas daquele lugar.
Pensou dessa vez na grande biblioteca onde estivera a primeira vez e segurou firme a pesada maçaneta da porta. Girou-a com a convicção de que entraria no lugar certo.
Um sorriso se abriu ao entrar na sala que havia imaginado. Parou um segundo. E se fosse só coincidência?
Fechou a porta e dirigiu-se a outra. Concentrou-se e abriu a porta para descobrir, estupefata, que estava certa. Era assim mesmo. Ela só tinha de saber onde queria chegar ali.
— Parece que descobriu um truque divertido, minha cara. — Ouviu a voz familiar e viu Elzevir caminhando esplendorosamente como uma dama da corte francesa. Abanou um enorme leque sobre Gio e sorriu. — Eu acabei de voltar e descobri uma ratinha em minhas bibliotecas. Venha! Vamos nos sentar num lugar agradável e conversar.
Conduziu-a até outra porta e entraram numa sala que parecia um grande recinto de leitura vitoriano. Indicou uma imensa poltrona confortável para ela e sentou-se em outra, ao seu lado. Gio ficou impressionada ao ver Elzevir mudar de forma assim que atravessou a porta e parecer um cavalheiro usando colete e traje completo da época que a sala remetia.
— Você estava ocupado?
— Consultando livros no seu mundo — explicou ajeitando um relógio de corrente no bolso do colete.
— Foi com aquela roupa de antes? — Achou que não era um estilo discreto para andar do outro lado.
— Ah. Não, tolinha! Eu sempre gosto de entrar na fortaleza em grande estilo. Nunca se sabe quem posso encontrar aqui quando chego. Detesto ser pego desprevenido para receber as pessoas. — brincou dando uma piscadela.
— Muita gente vem aqui?
— Não sem minha permissão, mas nunca se sabe — riu — Quer um chá, café, suco, informações? — Um conjunto de porcelana surgiu numa mesa próxima e Gio ficou olhando por alguns minutos.
— Talvez um café e... informações.
— Sim, claro. Esperei que viesse mais cedo, mas parece que andou passeando por outros lugares. — Seu tom de voz tornou-se mais lento enquanto servia a bebida quente e depois de lhe estender a xícara, sua sobrancelha arqueou a medida que um sorriso travesso de cumplicidade se formava em seu rosto.
— Ah, é. Obrigada. — Pegou a xícara e sentiu o perfumado aroma do café tomar seus sentidos. — Parece bom.
— Só o melhor para minhas visitas. Então, o que deseja saber?
— Ah, eu anotei num caderno de notas... — Fez menção de se levantar, mas a mão de Elzevir fez um gesto elegante e pouso sobre o braço da poltrona dela, indicando que aquilo era desnecessário.
— Não vai precisar, Gio. Aqui é Imaginarium. Você não vai esquecer de nada que falar e ouvir. Acredite, tudo que precisa já está em sua mente. — Sorriu confiante.
— Ah! Certo. — Tomou um gole do café e parecia o melhor café que já havia provado. Sorriu um pouco e ordenou suas ideias. — Você fez tudo isso aqui, então sabe de tudo que acontece aqui dentro, certo? Disse que ninguém entra aqui sem sua permissão, mas eu entrei.
— Você, é uma Gnóstis. A regra evidentemente parece que não se aplica a você. De qualquer forma eu tenho o poder de fechar a Fortaleza do Domo para qualquer biblio existente, assim como cada alfarrabista que cuida de um lugar como este tem o mesmo poder. Aqui nosso Gnósis se expõe ao máximo e somos nós quem ditamos as regras. Eu já havia permitido sua entrada quando a convidei antes, então sendo quem é ou não, você seria recebida pela fortaleza. Contudo você pode ir a qualquer lugar pelo que soube. — Tocou o indicador na bochecha, aguardando uma resposta.
— Sim. Eu estive em outro lugar — confessou e olhou para o café um tanto constrangida. — Eu fiquei curiosa sobre como seria o lugar onde Poliphilo guardava os livros Sumidouros. Ele não me levou lá primeiro, então achei que devia ir.
— E o que você achou? — recostou-se tranquilamente na poltrona, ouvindo-a.
— Bem, primeiro tinha a passagem... parecia uma gruta sabe. Eu fiz errado ou era pra ser assim?
— Um pouco dos dois, creio. Na verdade, é uma passagem menos glamorosa que a minha, confesso, mas geralmente parece uma estante muito antiga e pesada. Acho que sua passagem foi até razoável para uma primeira vez. As passagens podem mudar de aparência dependendo do destino... ou do que você imagina. — Parecia se divertir com aquilo.
— Aquele lugar tem nome?
— Todas as fortalezas tem. Aquela e a Fortaleza dos Esquecidos. Não tinha esse nome originalmente, mas Poliphilo a nomeou assim e assim ficou, afinal ele é o Alfarrabista dos Mortos.
— Ele tem esse nome porque os Sumidouros não tem mais Gnósis dentro deles?
— Você... sentiu o Gnósis deles? — Inclinou-se um pouco para frente com evidente curiosidade.
— Sim. Muitos, de fato, já estavam vazios, se posso dizer assim, mas ainda haviam os que possuíam Gnósis em si. Talvez por serem mais recentes ou por... — ficou procurando as palavras certas. — Por serem feitos por muitos. Quero dizer, mais de um necromon confeccionou cada um daqueles livros. Não eram como o primeiro que vi. O de Nômade era bem definido, como uma única voz. — Parou e esperou por alguma confirmação dele.
— Então eles realmente precisam se unir para fazer estes livros... pelo menos os mais frágeis. — comentou quase como se pensasse alto.
— Vocês não conseguem ouvir as vozes?
— Não podemos fazer algo com essa riqueza de detalhes que você está apresentando. Nós podemos sentir um Gnósis e se ele é forte ou fraco, mas ouvir as vozes, diferenciar quando um livro é composto por um ou por muitos, isso é coisa sua — sorriu.
— Poliphilo pode? Ele tinha certeza de que aquele livro era de Nômade.
— Essa é uma aptidão natural dele, assim como de muitos alfarrabistas; distinguir níveis de Gnósis, mas ouvir as vozes já está fora de nossa alçada. Pode-se dizer que ele é um especialista em Nômade e em Gnóstis. — Continuou reclinando-se um pouco mais para perto dela. — Ele procurou por alguém como você por séculos.
Gio ficou pensando naquilo e olhou para a xícara em suas mãos. Aquelas mãos que faziam livros, montavam e desmontavam suas estruturas eram as mãos de alguém que agora podia ouvi-los também.
— Se não conseguem ouvir as vozes, como desconfiavam que eram feitos por mais de um? — olhou-o diretamente nos olhos.
— Entre outras coisas, pela instabilidade da Gnósis contida neles. Você logo vai conseguir sentir os detalhes, as sutilezas. Imagino que com o tempo quanto mais contato tiver com a Gnósis ou Imaginarium, mais coisas se revelarão para você, talvez até muito além do que este velho alfarrabista saiba.
Gio sorriu um pouco. Era estranho ele se declarar velho porque aos olhos dela o que via era um homem jovem e belíssimo, mas que poderia tranquilamente ter centenas e centenas de anos.
— Quão velho? — ousou perguntar. Elzevir abriu um largo sorriso e serviu-se de uma xícara ele mesmo.
— Sou velho o bastante para já ter tido outros nomes, mas não o mais velho de todos. Assim como minha aparência, eu também já tive outras denominações, minha querida. Poli é alguns séculos mais novo.
— Poli... — Gio murmurou e gostou daquele apelido. Parecia mais prático que falar o nome imenso do outro alfarrabista. Sua menção a jogou para a próxima pergunta — Porque é a Fortaleza dos Esquecidos?
— Não podemos vê-los. Não sabemos onde estão ou como vivem. Não existe nenhum em Imaginarium e, embora devessem ser como nós, acabam sendo esquecidos por serem...
— Invisíveis. — Gio completou e Elzevir assentiu com um meneio da cabeça. — Poli os procurou sempre?
— Quando os primeiros Sumidouros foram encontrados, não sabíamos o que fazer com eles porque não era como os Grimoires que mantém seu próprio Gnósis, ainda que seus criadores tenham partido. Foi por essa época que Poliphilo surgiu e nós detectamos nele as habilidades de um alfarrabista. Ele recebeu o título de Alfarrabista dos Mortos porque no início imaginamos que estes livros também não tivessem mais donos, contudo Poliphilo nos mostrou que os livros surgiam numa proporção estranha e suas Gnósis irregulares mostravam uma criação conjunta.
“Foi então que ele encontrou um livro feito por Necromon e ficou firmemente decidido a descobrir o que acontecia com esses seres. A partir daí começou a estudar nossos antigos registros e entendeu que só um Gnóstis poderia nos ajudar a decifrar por completo o enigma.
“Por séculos ele buscou um Gnóstis que pudesse nos ajudar. Correu pelos países, pelos lugares de seu mundo, novos e velhos, mas sempre parecia ser um alarme falso. Ou era um boato ou uma pessoa que não tinha um Gnósis similar ao nosso. Até que ele conseguiu achar alguém com um relato confiável e seguiu a pista até você, mas acho que essa história é Poli quem deve lhe contar.”
— Existem relatos sobre vocês no meu mundo?
— Não exatamente. É mais fácil sermos relacionados a qualquer outra coisa que já existia no imaginário de seus povos. Circinus adora se gabar de como é citado em um manuscrito antigo como um djinn. Me infernizou até que eu cedesse o manuscrito para ele e agora está sob sua guarda — contou divertindo-se com a lembrança.
— Circinus? — Esse era um novo nome para guardar.
— Circinus é um alfarrabista como eu. É conhecido como o senhor da Fortaleza dos Adormecidos. É onde ficam os livros que foram escritos, mas nunca foram lidos, ou os que são tão antigos que ninguém se lembra mais deles. Ele tem uma linda fortaleza cheia de belezas também. — Sorriu com carinho. — E acho que ele parece um djinn mesmo. — Completou divertido. — Ele faz parte do Conselho. Com o tempo acho que você terá a chance de conhecer a todos. Com certeza eles vão querer ver uma Gnóstis quando a notícia tiver corrido.
— Eu vi um outro biblios... — Gio começou e pode notar os olhos de Elzevir mudarem de cor quando fez menção ao assunto — Eu estava tentando localizar o livro de Nômade, mas eu vi outro biblios e saí dali. Acho que ele sentiu minha presença ali.
— Entendo. Você sentiu a névoa fria?
— Como sabe? Você o conhece, então.
— Minha adorável artesã. Não tem ninguém que Elzevir não conheça. Aquele que você viu era Su Won, o Guardião dos Livros.
—Ele também é um alfarrabista?
— Ah, não. Ele tem outra natureza. É um guardião que protege livros e por isso tem passe livre em muitos lugares, mas mesmo assim precisa ser anunciado para entrar nas fortalezas. Digamos que, no momento, ele cuida da Fortaleza dos Esquecidos no lugar de Poliphilo, mas é claro que não tem o mesmo dom.
— O Grimoire dele era uma espada — murmurou como se revelasse um segredo terrível e Elzevir não pode deixar de sorrir com a surpresa daquela jovem.
— Ah, sim! Alguns biblios podem fazer isso. Podem dar um formato diferente as suas criações de acordo com sua natureza. Como pode ver a dele é um tanto marcial. Ele é um mantenedor da ordem e resolve problemas. Como direi, um mediador.
— Biblios cometem crimes? — aquilo não tinha lhe passado pela cabeça.
— Não exatamente, mas podem se meter em confusões. Principalmente os mais jovens e inexperientes. Se algum biblios pudesse cometer um crime, com certeza Su Won estaria lá para caçá-lo. — movimentou a xícara já vazia entre seus dedos longos. — Ele é famoso por ser um tanto implacável.
— Fiz bem em me esconder?
— Acho que ele a tomaria por um biblios já que seu Gnósis é exatamente igual ao nosso, mas ele ficaria intrigado em como você conseguiu entrar lá já que só os convidados entram nas fortalezas.
— Eu poderia dizer que sou uma convidada de Poli.
— Melhor evitar Su Won por enquanto, pelo menos até você conseguir dominar suas habilidades.
— Pensei que ele ia me seguir — confessou.
— Não conseguiria. As passagens podem deixar rastros, mas as feitas na Fortaleza dos Esquecidos têm a característica de se apagarem por causa dos livros Sumidouros acumulados lá. Os Sumidouros só ficam onde forem deixados por seus criadores, por isso são mantidos em correntes, para não desaparecerem. Uma ideia muito boa de Poli. Curiosamente ele mesmo adquiriu esse poder com o tempo; ninguém o rastreia.
— Então — um pensamento surgiu em sua mente com profunda urgência —, num caminho inverso, um necromon não conseguiria ficar com coisas que pega, como vocês? Eles não conseguiriam guardar nada porque as coisas voltam de onde vieram? — Apenas o visitante estava em sua mente agora.
Elzevir ficou em silêncio por alguns segundos. Ela não sabia se estava pensando na resposta ou se não tinha ideia do que ela tinha dito. Aquela inversão tinha sido tão espontânea que a própria Gio achou que sua teoria poderia não fazer sentido.
— Você já viu um necromon? — Aquela pergunta a pegou de surpresa. Seria isso? O visitante seria mesmo um necromon? E se fosse Nômade? Seria possível. Pensou que o armário parecia pequeno porque imaginara Necromon como um adulto, mas e se fosse um ser pequeno? Ninguém sabia como ele era.
— Eu... nunca vi — disse por fim. — Eu achei que eles podiam ser assim, eu vi algo quando era... — sua confissão foi interrompida pelo tilintar de uma suave campainha.
— Ah! Eu preciso ir. Tenho algumas tarefas a realizar, minha querida. Não, não! — fez um gesto para que ficasse no lugar — Eu prometo não demorar. Fique à vontade. Ande pela Fortaleza. Agora que conhece o truque das portas não vai mais se perder. — Caminhou até o corredor e antes de fechar a porta deixou-lhe uma última recomendação — Vá olhar as bibliotecas. Tem uma linda toda decorada no estilo Al-Andaluz do século VIII com uns textos lindos e maravilhosos. Você vai adorar as cores. Toda vez que entro lá me visto de califa. — Piscou e saiu.
Gio ficou sentada na poltrona por alguns minutos e finalmente resolvei seguir o conselho de seu anfitrião, mas antes queria testar algo. Voltou até a nave central da fortaleza e buscou na sua bolsa seu celular. O tinha carregado e queria fazer um experimento. Digitou uma mensagem e a enviou:
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Nina, estou bem. Se receber esta mensagem me responda imediatamente e fale em quanto tempo chegou depois que parti. Abraço.
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Aguardou alguns minutos. Curiosamente o tempo parecia passar inexorável em seu celular e assim ela tinha ficado quase uma hora ali, conversando com Elzevir na contagem do outro lado. Um leve sinal indicou uma mensagem recebida e ela leu rapidamente.
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Oh, Funciona! Chegou quase uma hora depois que você partiu. Já se passou esse tempo aí? A passagem venceu? KKKKK
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Gio, riu um pouco e respondeu:
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Acho que sim, ou o celular funciona como se estivesse no nosso tempo, independente da passagem. Aqui consta o mesmo tempo. Vou usar o celular como referência daí, então. Beijos.
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Nina respondeu prontamente:
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Se Cuide. Quero ibagens!
Beijos
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Gio, guardou o celular. Queria economizar bateria ao máximo para poder ter uma noção de quanto tempo estivera lá. Era engraçado imaginar Elzevir tirando uma self para mandar a Nina, mas imaginou que ele seria bem capaz disso. Resolveu seguir o conselho de seu anfitrião e foi ao encontro das inúmeras bibliotecas da fortaleza enquanto aguardava a sua volta.
Resolveu voltar a primeira biblioteca que lhe era familiar. Ao abrir a porta ela a esperava da mesma forma que havia visto antes. Seus olhos curiosos percorreram estantes, mesas, objetos. Tudo parecia igual a primeira vez que estivera lá, apenas com uma única diferença: o Grimoire de Poliphilo não estava ali, dessa vez. Claro, era natural que estivesse com ele, mas tinha de confessar uma certa decepção porque tinha a vontade de tentar abri-lo de novo, de preferência sem causar o estardalhaço de antes. Começava a se fazer perguntas sobre o que encontraria dentro do Grimoire daquele biblios tão obstinado.
Pensou que devia estar usando luvas como uma boa restauradora. Estava tão empolgada que se esquecera de princípios básicos! Correu para a bolsa encostada na entrada e procurou luvas para calçar. Colocou-as antes de observar tudo que podia ali. Depois de ficar algum tempo olhando os belos livros que estavam nas prateleiras com muito cuidado e divertir-se em descobrir que o que a grande maioria deles tinham em comum era o fato de terem sido feitos dentro de um mesmo estilo peculiar onde a parte do corte dianteiro era revestida de pinturas ilustradas ou douração com padrões coloridos e florais. Eram amostragens lindas de obras de um período da história da arte de fazer livros. Imaginou quantos recintos mais estavam cobertos de obras assim por ali e quantos desses nem mais existiam em seu mundo. O trabalho de Elzevir em recolher obras do mundo faria inveja a qualquer registro de obras que existisse do outro lado. Isso, multiplicado por obras no mundo todo, seria um trabalho titânico e havia razão para haver muitos outros alfarrabistas. Acreditou que talvez tivessem assistentes. Estariam espalhados pelo mundo buscando novos livros? A ideia lhe pareceu um trabalho excitante: descobrir novas obras geradas no mundo todos os dias? Quantas seriam? Centenas, milhares? Não tinha como mensurar como faziam isso e como eram capazes de selecionar tudo. A cada segundo tinha mais e mais perguntas para fazer ao anfitrião.
Resolveu sair daquela biblioteca e ir conhecer a sugerida por ele. Fechou a porta e apenas pensou no lugar para constatar que, ao girar a maçaneta novamente, já estava nele. Parou um minuto para pensar que se era tão simples, porque não havia apenas uma única porta? Havia um limite para a magia? O recurso era para os novatos como ela porque Elzevir sabia de cabeça para baixo onde estava cada biblioteca? Mais perguntas divertidas para fazer sobre aquele lugar que parecia cada vez mais fantástico. Imaginou que talvez ele respondesse algo como “Porque, não? É mais divertido assim!”.
Como havia lhe dito era um suntuoso recinto que parecia mais um grandioso palácio em típica arquitetura Al-Andaluz do século VIII. Colunatas lindamente ornamentadas sustentavam arcos luminosos de mármore e dois tons e o piso era recoberto por uma profusão de itens decorativos como lindos e imensos tapetes, grandiosas cortinas de belo caimento, imensos vasos esculpidos com inserções em bronze, puffs tribais com estamparias antigas, misturados a almofadões cujos tecidos cintilavam cores vivas e detalhes de ricos bordados. Haviam incontáveis nichos com antigos livros ou pergaminhos enrolados e armazenados cuidadosamente. Outros estavam em cuidadosas pilhas sobre mesas baixas e alguns guardados em estojos cilíndricos que pareciam caros o bastante para comprar muitas propriedades. Alguns dos estojos formavam uma espécie de capa que se enrolava sobre o pergaminho, mas eram cuidadosamente projetados para se abrirem ao gesto de desenrolar. Verdadeiras obras de arte. Tocou alguns com a ponta dos dedos, morta de medo de fazer algo errado. Devia ter trazido mais luvas para olhar aquele mundo de coisas belas. Era como ter um banquete diante de si e estar com as mãos sujas. Afastou-se um pouco daquelas belezas que pareciam mais joias em forma de livros e textos e suspirou olhando novamente para o alto, admirando as cúpulas todas gravadas em baixo relevo com milhares de inscrições em árabe. Era um espetáculo visual de algum lugar que bem podia nem existir mais e Elzevir havia reproduzido ali. Tudo uma vez estivera em seu mundo e agora estava ali. Quantas daquelas obras ainda deveriam ter um equivalente do outro lado?
Sentiu um leve tinir visto de um canto do recinto que parecia ser causado pelas moedas bordadas nos imensos almofadões. Foi então que percebeu que havia outra pessoa naquele lugar.
Era pequeno e estava sentado em um puff alto e grande, quase afundado nele, cercado de muitos outros tão coloridos quanto suas vestes. Gio levou um tempo para distingui-lo de todo o resto e por fim entendeu o porquê; além das roupas, cujas corem eram intensas, todo seu corpo era revestido por um tecido de rica estamparia colorida, que lembrava muito o estilo do colete de Poliphilo, mas com uma riqueza maior em tons. Não havia nada visível de sua pele; todo ele, até a cabeça era coberta de tecido. Seu rosto possuía uma delicada máscara branca de porcelana encaixada à perfeição, como se fizesse parte do corpo, simulando delicadamente apenas o formato. No lugar dos lábios uma pequena fenda reta e os olhos lembravam dois traços curvos para cima. A Gio lhe veio na mente a imagem de um desenho infantil de olhos sorridentes fechados. Onde ficava a testa havia encravado uma minúscula mandala circular de ouro em baixo relevo. Olhou por alguns segundos para as largas pantalonas de cetim azul profundo, a túnica de um vermelho queimado, presa lateralmente com um longo broche que lhe lembrou um tanto as roupas da Europa oriental, combinando com as botas escuras. Não tinha o tamanho de um adulto como os outros biblios que vira. O que a chocou foi perceber que parecia uma boneca parada ali, mas na verdade era um biblios, um biblios do tamanho de uma criança.
Se fosse comparar com um humano, equivaleria a uma criança de nove ou dez anos. De compleição delicada e que estava tão quieto que poderia passar desapercebido dela naquele mar de objetos suntuosos, como um pequeno camaleão. Notou que suas pequenas mãos revestidas de tecido seguravam algo pequeno com muito cuidado. Imaginou que era tecnicamente um biblios criança.
— Olá. Eu não tinha te visto antes. Estava tão quietinho. Eu sou Giovanna. — Deu um passo adiante devagar e o biblios continuou a não se mexer. Pode notar apenas que sua cabeça pendia de um lado a outro como se a admirasse. Resolveu agachar-se para deixa-lo mais confortável com a questão do tamanho. Apoiou a mão num felpudo tapete persa em baixo de si e sorriu gentilmente. — Como você se chama?
Por um momento pensou que o pequeno biblios estava indiferente à sua pergunta. Foi então que, para sua surpresa, colocou seu objeto de valor ao seu lado no puff e procurou algo escondido em um bolso de sua pantalona. Então Gio pode ver que o pequeno objeto era um livro em miniatura. Era tão bonito que ela pensou que aquilo só poderia ser um Grimoire. Tinha tons furta-cor tão delicados indo do pêssego ao azul, com pequenas joias peroladas e coisas miúdas presas a capa como engastadas nela. Era gracioso como um brinquedo e emanava um Gnósis que ela conseguia sentir mesmo a certa distância. Era uma energia pura e concentrada, suave como receber a luz do sol numa manhã de Primavera. Ela não sabia definir aquilo de outra maneira, a não ser como um Gnósis feliz.
O pequeno logo relevou um bloco de papel e fez um movimento com o dedo sobre uma das folhas. Em seguida, mostrou-a para Gio que achou a técnica de escrita dele bem prática. Leu o que estava escrito ali:
— Salomon. Esse é seu nome, certo? — Sorriu e ele balançou a cabeça de modo afirmativo. — É um prazer conhecer você. É assistente de Elzevir?
Novamente uma afirmação veio e o estalar da grande porta abrindo fez o pequeno ficar em pé e empinar o corpo. Gio virou-se e viu Elzevir entrando transformado num califa Omíada, sacolejando uma pluma colorida com ponteira para escrita. Ela quase riu ao ver aquilo.
— Ah! Vejo que conheceu o pequeno Salomon — disse satisfeito. — Seu amigo chegou. Vá vê-lo. — observou o biblios pegar seu pequeno livro e caminhar apressado para fora dali. Gio levantou-se e o viu desaparecer pela porta. Era realmente como uma criança.
— Eu não imaginava que existiam biblios crianças.
— Sim, embora esse seja tão esperto que às vezes acho que é um baixinho se passando por criança — brincou.
— Nós estávamos conversando um pouco, mas ele parece não falar.
— Fala um pouco, mas raramente. Gosta de escrever no bloco que Poliphilo lhe deu. Ele está aqui. Vamos vê-lo.
— Ah, sim! — animou-se e seguiram caminhando juntos enquanto ela elogiava as bibliotecas. Fatalmente resolveu matar a curiosidade sobre as portas.
Elzevir parou e olhou para o corredor pensativo.
— São todas a mesma porta e todas são diferentes ao mesmo tempo. Seria aborrecido ter uma só. Assim fica mais grandioso — continuou. — Por outro lado, talvez algumas portas abram para bibliotecas únicas, mas só eu sei como. — Piscou e continuaram para a nave central enquanto se transformava num cavalheiro francês do século XVIII.
Logo Gio viu Poliphilo com um dos joelhos apoiado no chão para equiparar-se em altura com Salomon. Ele lhe falava num tom baixo e sorria para o pequeno que balançou a cabeça numa concordância. Olhou para Gio e depois foi sentar numa poltrona que ficava num extremo da nave. Ela notou que ele não estava mais com o pequeno Grimoire e imaginou que o tivesse guardado. Poliphilo caminhou em sua direção com um sorriso tranquilo e ela sentiu um certo alívio por vê-lo novamente depois de todo aquele tempo. Aquela sensação lhe era familiar como das vezes que o visitante aparecia nos seus dias de infância. Ele parecia bem, mas notou que o brilho em seus olhos mudara de um tom dourado para um mais suave, como um tom de prata. Aquilo era novo. Ela não conseguia explicar, mas sentiu que Poliphilo estava um tanto esgotado.
— Ah, vejo que já aprendeu a vir para cá. Como está indo com suas perguntas? Imagino que fez algumas para Elzevir.
— Sim, eu acho que consigo lidar bem com as passagens e as portas. — Apontou para o corredor sorrindo. Ele riu. — Eu conheci Salomon a pouco. Fico feliz em revê-lo, Poliphilo.
— Acho que podemos experimentar uma leitura hoje, que tal? — ele sugeriu e abriu a palma de sua mão fazendo seu Grimoire surgir em meio a um turbilhão luminoso.
— Nossa! É um bom meio de carregar livros — disse encantada com aquilo. — Eu gostaria de tentar.
— Acha que está tudo certo? — Elzevir perguntou ao amigo que o olhou e concordou com a cabeça. Gio detectou um tom de preocupação no anfitrião.
— Vou tentar não desmontar nada — ela disse prontamente. Poliphilo riu um pouco e Elzevir sorriu concordando.
— É o que eu espero.
— Pode ser feito — Poliphilo falou firme e olhou para Salomon que juntou as mãos num gesto de expectativa.
Caminhou até uma antiga e maciça mesa colocando seu Grimoire cuidadosamente sobre ela e fez um gesto para ela se aproximar. Gio tirou suas luvas de látex e guardou-as nos bolsos enquanto caminhava e olhava para todos os detalhes daquele magnífico exemplar. As cores, os detalhes, sua aura luminosa, tudo parecia lhe falar. Notou aquele mesmo reflexo furta-cor que havia no pequeno livro de Salomon, mas aqui agitava-se com mais força e intensidade. Eles já se conheciam e ao pairar levemente os dedos sobre a capa aquela mesma sensação de algo vivo percorreu seu corpo. Contudo, desta vez ela precisava estar no comando. Precisava controlar o tanto de poder que se manifestaria ali e tinha de ser cuidadosa. Lembrou-se curiosamente daquilo que sempre lera sobre os livros; que as histórias deveriam fazer-nos querer virar as páginas, mas no final, quem controlava o ritmo da leitura era o leitor.
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Eu sou a Gnóstis. Agora eu devo lê-lo e controlarei esta leitura. Mostre-se para mim, Grimoire de Poliphilo.
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Foi pensando assim que ela tocou no canto da capa, pronta e firme para abrir o livro. Para sua surpresa a cor se fixou num profundo tom esmeralda azulado que cintilava com um aspecto metálico e a aura recolheu-se para o interior do livro. Agora era um exemplar completamente estagnado, como se estivesse a reter seu próprio fôlego sobrenatural. Ela olhou de canto de olho para Poliphilo que observava com curiosidade. Inspirou profundamente e abriu o Grimoire calmamente. O que ambos exalariam ao libertar seus respectivos sopros?
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[1] Traje tradicional coreano
[2] Acessório tradicional usado como um pingente nos trajes típicos coreanos.


